sexta-feira, 5 de junho de 2009

SÉRIE: Cinquentenário do Estádio do Restelo - Capítulo II - 1ª parte

Capítulo II: O Caminho das Salésias ao Restelo
1ª parte: ventos de mudança


No capítulo anterior recordámos – ainda que de forma sintética - os dias do Belenenses nos seus antigos campos «ignorando» propositadamente os detalhes dos acontecimentos que levariam à construção de um novo estádio. Assim sendo, cabe-nos agora recuar de novo no tempo, desde aquela manhã em que uma multidão calcorreou o percurso das Salésias ao Restelo, até ao momento em que verdadeiramente se iniciou essa caminhada… da qual o cortejo de Setembro de 1956 foi, no fundo, uma emocionada evocação simbólica.

Antes de mais, torna-se conveniente fazer uma breve análise de alguns dos motivos subjacentes à ordem de expulsão das Salésias (em Junho de 1946), pois nem todos diziam exclusivamente respeito ao Belenenses ou, pelo menos, entrecruzavam-se numa teia de circunstâncias que afectavam os clubes em geral.

Podemos afirmar que a partir do início da década de 30 foram duas as grandes «frentes» de mudança conjuntural. Por um lado, uma que partia dos próprios clubes de futebol, que por contrapartida da sua popularidade crescente e do reconhecimento generalizado da importância da formação desportiva, pretendiam uma maior comparticipação estatal nos investimentos tidos como necessários para manter – e até expandir – aquela sua função.

A outra «frente» dizia respeito ao próprio Estado, que na mesma altura se preparava para efectuar uma série de obras públicas de vulto. No caso particular da zona de Lisboa, projectava a criação de novos bairros, espaços de recreio e lazer, bem como uma nova rede viária, tudo em grandes proporções.
Num momento inicial, não era evidente a necessidade de emparceiramento com os clubes, evitando a incómoda concorrência de reivindicações que a pluralidade de emblemas cogitava.

Porém, em 1933, por iniciativa conjunta de um grupo parlamentar e do jornal «Os Sports» (o mais importante de então), realizou-se o primeiro Congresso de Clubes Desportivos, cujas conclusões viriam a ser apresentadas ao Presidente do Conselho de Ministros (já na altura a figura máxima do poder). As diversas exigências incluíam, à cabeça, a construção de um «estádio nacional», pois considerava-se que em todo o País não existia ainda um recinto apropriado para eventos desportivos de grande envergadura (incluindo a realização de jogos internacionais). Das restantes, destacavam-se ainda: a construção de instalações locais e/ou regionais que pudessem ser aproveitadas pela generalidade dos clubes; a criação de um organismo governamental que regulasse e fomentasse a actividade desportiva; a criação de uma escola superior de educação física e a atribuição de um estatuto especial aos clubes, como reconhecimento acrescido da sua utilidade pública (com a respectiva concessão de vantagens fiscais).

Culminando aquele movimento concertado, os clubes marcaram presença numa grande «parada atlética» no Terreiro do Paço (a 3 de Dezembro de 1933), prestando homenagem ao Presidente do Conselho e, enfim, aguardando o seu veredicto. Foi então que António de Oliveira Salazar confirmou a promessa de construir o Estádio Nacional. A questão dos estádios dos clubes, como veremos, seria para resolver depois, caso a caso.

Como já referimos no capítulo anterior, quem não ficou à espera foi o Belenenses. Em 1937, sem apoios estatais ou camarários, inaugurou o primeiro campo relvado em Portugal, assumindo assim o papel de anfitrião dos maiores espectáculos desportivos. Isto enquanto o referido Estádio Nacional não fosse uma realidade, o que só viria a acontecer em 1944, como também veremos adiante.

Do estrangeiro, entretanto, continuavam a chegar exemplos de grandes estádios, alguns deles erigidos ostensivamente como símbolos de poder das nações (tal como viria a ser, em boa medida, o Estádio Nacional). O melhor exemplo de todos era o «Olympiastadion», em Berlim, onde Hitler presidiu à celebração dos Jogos Olímpicos de 1936. Dispunha da exorbitante capacidade para sentar 110 mil espectadores!
Os maiores clubes europeus, por sua vez, sonhavam contar com semelhantes recintos, apenas comparáveis aos antigos Coliseus romanos.


O colossal complexo do Olympiastadion de Berlin



Quanto aos clubes lisboetas, numa primeira instância, teriam de se sujeitar ao desfiar de prioridades do Governo e Câmara Municipal.

Em 1938 foi inaugurado o Parque Florestal de Monsanto, onde desde tempos remotos mal existiam árvores e se cultivavam searas e hortas. Pouco depois, iniciava-se a construção de uma auto-estrada que «cortaria» as mesmas serranias fazendo a ligação entre as Amoreiras e o Estádio Nacional (hoje parte da auto-estrada de Cascais), recinto que na mesma altura já brotava numa outra futura zona florestal, mais distante (o Vale do Jamor).


Vista de Monsanto a partir da Ajuda (1939)



O Vale do Jamor por altura da construção do Estádio Nacional (ao fundo)



O primeiro grande clube afectado seria o Benfica, que a troco de uma indemnização monetária e da cedência de um antigo campo do Sporting (no Campo Grande), teria de abandonar o seu campo das Amoreiras, pois por ali desembocaria o Viaduto de Duarte Pacheco. Nessa altura, curiosamente, pôs o Belenenses o seu estádio à disposição dos «encarnados».

Contudo, a idéia inicial da Câmara Municipal de Lisboa era mais arrojada: propunha a todos os grandes clubes a construção de novos complexos desportivos no Parque de Monsanto, a seu cargo e por contrapartida do abandono de todos os campos já existentes na cidade.

Para o Benfica, tal solução implicava que a utilização do estádio do Campo Grande (a célebre «estância de madeira») se tornasse provisória. Para além disso, com o argumento de ter sido o primeiro clube afectado, conseguiu também o privilégio de ser o primeiro a escolher um espaço em Monsanto. O Sporting, por seu turno, deveria suspender as obras previstas para o seu «novo» campo (situava-se em local aproximado do primeiro campo da sua história, no Lumiar). O Belenenses, em boa medida, era o que mais tinha a perder: tão só e de longe o melhor estádio do País, mas também a preciosa, característica e antiga ligação umbilical a Belém.

Esmorecido o interesse das partes, o «plano de Monsanto» afinal não passaria das intenções.

Em 1940, como já referimos anteriormente, foi a vez do Casa Pia A.C. ter de abandonar o Campo do Restelo, sacrificado à Exposição do Mundo Português. Até encontrar solução definitiva, recorreu a um antigo campo para os lados do Rio Seco (que havia pertencido ao União de Lisboa).

Em 1944, mais concretamente no dia 10 de Junho, foi finalmente inaugurado o Estádio Nacional, disputando-se um jogo entre Benfica e Sporting… sobre aquele que ainda era somente o segundo campo relvado do País (depois das Salésias).

Chegados ao ano de 1946, só existia mais um campo relvado: o da Tapadinha, pertencente ao Atlético Clube de Portugal, que havia sido inaugurado no ano anterior. As Salésias, embora a partir daí preteridas para a realização das finais da Taça e dos jogos da Selecção (em favor do Estádio Nacional), ainda serviam de campo de treino para esta última, pois na cidade de Lisboa continuava a não haver melhor.

Foi então que chegou a notícia que tomou de (desagradável) surpresa o Belenenses, como já descrevemos no anterior capítulo.

Quanto aos rivais, o Benfica havia obtido pouco tempo antes (em Maio de 1946) a promessa de poder voltar ao seu lugar de origem. Em reunião com o Ministro das Obras Públicas, este declarou solenemente: «o Benfica é de Benfica e para lá tem de voltar!». Abandonaria assim o estádio do Campo Grande para depois erguer, numa solitária planura, o «Estádio de Carnide», mais tarde conhecido como… Estádio da Luz. Seria inaugurado em 1954, sendo o primeiro campo relvado dos «encarnados».

O Sporting, que já se encontrava (re)instalado no seu berço de origem, também nessa altura (1946) decidiu promover melhorias, incluindo o arrelvamento do seu campo e a posterior construção de um novo estádio (no mesmo local), que viria a inaugurar a 10 de Junho de 1956 (o Estádio José de Alvalade).

A esta altura impõe-se uma nota de ressalva: quando aqui referimos a situação de outros clubes não o fazemos por reverência ou, inversamente, por desrespeito. Nem tão pouco desvirtuamos o nosso propósito, que é dar a conhecer uma (pequena) parte da história do Belenenses. O que apresentamos não são senão factos, reconhecidos e divulgados pelos próprios emblemas e instituições em causa, que nos permitem descrever o cenário geral em que se desenrolaram acontecimentos respeitantes ao Belenenses, sendo estes últimos indissociáveis daquele.

Para completar o «quadro geral», urge ainda fazer referência ao que entretanto ocorria na zona de Belém em particular. Recorde-se, uma vez mais, que a justificação para a expropriação das Salésias era, segundo a C.M.L., a necessidade de urbanização.

Com efeito, já desde o final da década de 30 se faziam sentir profundas alterações, acentuadas com a realização da Exposição do Mundo Português: surgiu a Praça do Império; foi inaugurado o Bairro Novo de Belém (ou Bairro das Terras do Forno, entre a Rua dos Jerónimos e a Calçada do Galvão); foram abertas as avenidas da Torre de Belém, do Restelo e da Índia, neste último caso implicando a destruição de gasómetros que serviam a Fábrica de Gás de Belém (cuja demolição se previa para a mesma altura, mas só se veio a efectuar já em 1950); desapareceu também o antigo Mercado de Belém e, por fim, a Casa Pia de Lisboa teve de abandonar o Mosteiro dos Jerónimos para se instalar no Colégio Pina Manique (nas traseiras), enquanto os terrenos que dispunha a Norte, da antiga «cerca», foram sendo expropriados (ficariam limitados, como hoje, pelo traçado da Avenida do Restelo).

Para os descampados que permaneciam a Norte, até às imediações de Monsanto e Caselas, já tudo estava traçado no papel, incluindo um bairro residencial com pretensões de luxo. Nada ou quase nada escapava aos planos de urbanização. Uma vez mais, depois de meio século de atribulações, o grande clube de Belém teria de sofrer para não se apartar do seu bairro.