quarta-feira, 27 de maio de 2009

Grande Vicente!

Lenda imortal, coração grande

Ao escrever sobre Vicente (recuso o vulgarizante artigo definido) os maiores louvores e elogios que se lhe possam fazer… obrigatoriamente pecam por defeito. Nunca o vi jogar (salvo pelas imagens do Mundial de 66), mas os livros e os testemunhos de outros não deixam margem para dúvidas. Vicente é o arquétipo do ideal Belenenses.

Possuidor de capacidades técnicas ímpares e de uma inteligência táctica notabilíssima, se pudesse jogar hoje Vicente desmentiria com facilidade a idéia de que os jogadores de outrora não teriam lugar no futebol actual. Com extrema facilidade. Com uma concentração invulgar, sabia posicionar-se, manter a vista na bola, adivinhar os pensamentos do adversário e fazer os "tackles" no momento exacto, naquela fracção de milésimos de segundo tão difícil de calcular até mesmo para os melhores físicos que se possam reunir (ainda menos outros jogadores de hoje em dia). Assim "cortava" bolas com eficácia de pasmar, quando o adversário ainda mal tinha dado conta da sua presença. Tornou-se mesmo popular a expressão, quase cinematográfica: "Corta, Vicente!"

Mas se as qualidades técnicas elevaram Vicente à galeria dos melhores de sempre do Mundo (sim, uma vez mais, nada de exagerado), as qualidades humanas em nada ficavam atrás. Antes, as duas eram complemento evidente, que se traduzia no próprio comportamento em campo. Acanhado, humilde, discreto, Vicente era e é de uma bonomia desconcertante, de uma quase ternura pelo próximo. E com os adversários, em campo, não fazia excepção. Ao falar do Vicente uma das primeiras coisas que o meu Pai se recorda (ele sim, viu-o jogar) era a forma como este jogava sempre, mas sempre sem maldade. E não era apenas a intenção, Vicente nunca ou raramente magoou algum opositor. Mesmo quando pensasse que o tinha feito, era o primeiro a confortar o jogador caído, como se de um irmão de sangue se tratasse. Vejam só, tentem conceber para os dias de hoje um jogador que seja por si só uma autêntica e intransponível muralha defensiva (agora chamam-lhes "trincos", "ferrolhos" ou sei lá o quê) sem nunca recorrer à violência física. Só mesmo algum "craque" de outro mundo, só mesmo alguém com talento infinito. Só mesmo um Vicente, como não os há.

Num passado jantar de aniversário do Clube também tive o privilégio de escutar mais um impressionante depoimento de quem viu o Vicente em campo. Foi da parte do grande fadista e Belenenses dos sete costados, Carlos do Carmo (pouco mais velho, vizinho de bairro e aluno da mesma escola que o meu Pai), que contou perante uma embevecida plateia azul como Vicente lhe proporcionava uma peculiar forma de apreciar um jogo de futebol. Confessou Carlos do Carmo que numa daquelas tardes de Domingo decidiu seguir com a vista apenas e só Vicente, abstraindo-se de tudo o resto, do que faziam todos os outros jogadores e a própria bola. Não surpreendentemente, valeu a pena, disse. Valia a pena só ver Vicente jogar. Por tudo o que já referi acima, porque a sua visão e inteligência faziam com que o decurso de um jogo inteiro se concentrasse e palpitasse naquele cérebro, naqueles músculos… como um Deus que se passeia por entre mundanos e impotentes mortais.


A carreira e breve história de um campeão

Não, o Belenenses não teve a alegria de ver Vicente integrar uma equipa vencedora do título máximo do futebol nacional. Mas como veremos, é pormenor de somenos. Porque nem valeria afirmar que Vicente merecia um Campeonato Nacional. Um qualquer Campeonato Nacional é que deveria estar à altura de merecer Vicente!

Vicente Lucas nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo, capital de Moçambique), no bairro pobre do Alto Mahé, a 24 de Setembro de 1935. Filho de Lucas Matambo, tipógrafo, e de Margarida Heliodoro, era o mais novo de uma numerosa prole (tinha 4 irmãos). Entre os irmãos mais velhos, claro, outra incontornável referência do futebol: o nosso Matateu (Sebastião Lucas da Fonseca - ou Lucas Sebastião, como corrigiu a sua filha Argentina, há tempos).
É difícil falar de Vicente sem falar de Matateu, eram do mesmíssimo sangue e foi por influência deste último que o irmão seguiu na mesma profissão e o seguiu até ao Belenenses. E ambos foram futebolistas excepcionais. No entanto Matateu chegou primeiro, vingou, tornou-se goleador de sonho e era um homem extrovertido e idolatrado pelas multidões com a maior naturalidade. Vicente em boa medida era o oposto. Jogador defensivo, introvertido e pouco ou nada ocupado com a sua fama. Por tudo isto e desde a época em que jogaram no Belenenses existe uma injusta tendência para colocar Vicente sob a "sombra" do irmão. Não, as glórias de um e outro são absolutas.

Vicente, tal como o irmão, também tinha alcunha no bairro. Só que enquanto "Ma' Tateu" (que em landim significa crosta de pele, talvez por se esfolar frequentemente nos pelados da “bola”) vingou junto das gentes da Metrópole, "Ma' Ndjombo" (que em landim significa muita sorte), a de Vicente, já não.

Vicente começou por jogar num clube de bairro, até ingressar como júnior no mesmo clube por onde passara o irmão Matateu, o 1º de Maio, já então filial do Belenenses (ainda é hoje). Havia sido João Belo (Campeão de Portugal pelo Belenenses em 1933) a descobrir o "filão" daquela família.
Foi quando já Matateu levava ao delírio as bancadas das Salésias que o nome do seu irmão começou a ser falado. Dizia o irmão mais velho que Vicente ainda era melhor que ele! Começaram então os esforços para juntar os dois em Belém, algo que apesar da maior resistência de Vicente (e da sua mãe), acabou por acontecer.
O Belenenses, Lisboa e Portugal rebentavam de ansiedade. Falava-se da vinda de um "Matateu II". Quando Vicente finalmente desembarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, a 30 de Junho de 1954, tinha à sua espera uma numerosa comitiva, que incluía não só dirigentes do Clube, o irmão Matateu, mas todo um ajuntamento de associados e curiosos. Foi reportagem de jornal! Ao saber que o estampavam já com o epíteto de "Matateu II", a forte personalidade e o orgulho de Vicente logo o levaram a exclamar: "Matateu II não! Eu sou o Vicente." Uma vez mais, um génio do mesmo sangue, mas outro génio.

A partir da estreia - com tão só 19 anos – foi questão de pouco tempo até Vicente encantar os Belenenses, o País e o Mundo. No Belenenses destaca-se a vitória na Taça de Portugal, em 1960.

Pela Selecção imortalizou-se também como um dos melhores de sempre. É o 3º jogador do Belenenses com mais internacionalizações (20), atrás apenas do irmão (27) e do igualmente enorme Augusto Silva (21). Mas talvez o feito maior e mais conhecido de todos foi a presença no Mundial de 1966, onde tratou de "secar"… o "Rei", o brasileiro Pelé. Deixo para outra ocasião um relato sobre a brilhante saga de Vicente em Inglaterra, mas aproveito para fazer referência a um artigo que Luís Oliveira deixou no bloghue Canto Azul ao Sul, que traduz bem a grandeza de Vicente e a ajuda a esclarecer certo equívoco quanto à sua responsabilidade por certa lesão do "Rei" nesse Mundial: "A simpatia de Pelé pelo Belenenses".

A título de curiosidade, Portugal acabou por ser eliminado pela Inglaterra num desafio em que Vicente… não jogou, alegadamente por não estar em condições físicas. Em surdina, timidamente, houve e há quem assegure que, tivesse Vicente jogado, não teríamos perdido esse jogo e quiçá o Mundial teria sido português. Talvez se Vicente fosse de outro clube esta história fosse diferente…
Mas hoje por aqui fico em detalhes sobre a sua carreira, terminada de forma triste… que nos faz pensar na justiça que há neste mundo. Uma daquelas estúpidas e desleais rasteiras da vida… logo a um dos mais leais e bons dos homens.


Vicente hoje

Vicente costuma ser presença assídua no Restelo e em efemérides do Clube (em boa-hora este o elege como símbolo máximo). Tive o privilégio de me cruzar com ele algumas vezes, causando-me sempre uma estranha sensação… de arrepios, de rendição absoluta e paralisante. Novamente, como um mortal que se atreve a aproximar de uma divindade. E o bom Vicente sempre tão afável, tão simpático, como se eu e todos os outros afinal fôssemos menos que ele!
A primeira vez que estive a seu lado foi num treino de captação, ainda Vicente era responsável nas nossas camadas jovens (fui lá mais por curiosidade, pois nunca na vida me senti talhado para jogador). Nessa tarde constatei como Vicente, apesar da sua generosidade e simpatia, não deixava de ser um mestre rigoroso e disciplinador. Fruto da escola de muitos e excelentes treinadores, logo com o mítico Riera à cabeça, não esquecer...
Noutra vez e em almoço da Mailing List da Trafaria, novo encontro. Uma nota: ao desembarcarmos do cacilheiro, vindos de Belém, os homens que estavam no cais (completamente alheios ao evento) não evitaram comentar entre si: "Olha, é aquele, o irmão do Matateu...".
Por fim, a última vez que estive com Vicente foi no âmbito da "Volta Azul a Portugal" pela filiais do Belenenses. Em Elvas, uma vez mais, Vicente a fazer as vezes de embaixador do Clube. E que Senhor Embaixador!

Costumamos dizer, por rigor, que nenhum técnico ou jogador alguma vez estará acima do Belenenses. Pela lógica, nem faz sentido. Mas Vicente é Enorme como o Belenenses. Hoje e para mim é como se fôsse um 2ª Aniversário do Clube.
70 anos é uma bonita idade, mas cá estaremos por muitos mais ainda para juntos festejar novas vitórias!

Parabéns Vicente!
Parabéns! Obrigado por tudo! Obrigado!

Nota: uma primeira versão deste texto, pequena homenagem por ocasião do 70º aniversário de Vicente, foi publicada pelo autor a 24 de Setembro de 2005 no blogue Canto Azul ao Sul

terça-feira, 26 de maio de 2009

A conquista do Campeonato de 1945/56

Belenenses Campeão

Em 1946 o Belenenses conquistou o Campeonato Nacional da 1ª Divisão: o maior título em futebol, da maior prova do desporto português. Já antes o nosso Clube havia conquistado 3 Campeonatos de Portugal, que, sendo à época a máxima competição, deveriam ser considerados como equivalentes. Contudo, os Campeonatos de Portugal eram disputados no formato que agora conhecemos como de "Taça" (por eliminatórias), enquanto os Campeonatos Nacionais da 1ª Divisão, introduzidos em 1935 e "oficializados" em 1938, consagraram a competição por pontos (todos contra todos). Não sendo essa diferença razão para menosprezar os Campeonatos de Portugal, como é frequente constatar nos diversos órgãos de Comunicação Social, é porém justo dizer que o título conquistado em 1946 terá sido o maior feito do Clube de Futebol "Os Belenenses" até hoje. Para ser Campeão Nacional o Belenenses conseguiu 18 vitórias, um registo que só seria repetido em... 1987/88 (3º lugar), num campeonato já disputado por... 20 equipas! (18 vitórias, 12 empates e 8 derrotas, em 1987/88, contra 18 vitórias, 2 empates e 2 derrotas em 1945/46, num campeonato com 12 equipas).
Vamos aqui relembrar e analisar alguns dos aspectos mais determinantes dessa grande conquista.


Portugal e a Europa, depois das Grandes Guerras

É curioso constatar que o título de 1946 foi alcançado praticamente um ano depois do fim da 2ª Guerra Mundial na Europa (a vitória final dos aliados sobre o Japão só se sucederia cerca de 3 meses mais tarde), enquanto a fundação do próprio Clube, em 1919, concretizou-se cerca de 10 meses após a declaração do Armistício da 1ª Guerra Mundial.
No entanto, como se sabe, as consequências das duas Guerras Mundiais foram distintas para o nosso País. Portugal participou como beligerante na 1ª Guerra Mundial, onde inclusivé combateram alguns dos futuros jogadores do Belenenses, com destaque para Francisco Pereira, irmão do nosso grande fundador, Artur José Pereira (chegou a receber louvor pela bravura demonstrada em Moçambique). No caso da 2ª Guerra Mundial, o nosso país manteve a neutralidade. Embora fossem também tempos difíceis (e a neutralidade se traduzisse numa distribuição de apoios camuflados aos dois blocos beligerantes), não se comparam com os problemas vividos aquando do primeiro conflito.

Em 1945 já haviam decorrido cerca de 12 anos sobre a implantação do "Estado Novo", sendo que foi curiosamente nesse mesmo ano que a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) foi convertida na famosa PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).
As relações entre o Belenenses e o Estado Novo, contrariamente ao que se veicula com frequência, não se revestiam de nenhuma proximidade especial, muito menos de favorecimento. Nalguns casos sucedeu-se até o contrário. O melhor exemplo envolveu dois dos futuros campeões de 1946, Mariano Amaro e Artur Quaresma.
A 30 de Janeiro de 1938, antes de se iniciar um Portugal-Espanha, deu-se um episódio deveras curioso e praticamente desconhecido da maioria, que envolveu 3 jogadores do Belenenses então seleccionados (onde se incluía também Simões, para além de Amaro e Quaresma). Defrontavam-se então Portugal, sob a ditadura de Salazar, e a Espanha de Franco, futuro ditador (ali travava-se ainda a sangrenta guerra civil, pelo que o jogo não foi reconhecido pelas instâncias internacionais do futebol). Assim sendo, tinha-se tornado obrigatória a saudação fascista (naquele tempo "olímpica", mas que servia perfeitamente aos tempos) no alinhamento inicial. E foi então que alguns faltaram à regra: Quaresma ficou em sentido, não erguendo sequer o braço; Simões e Amaro ergueram os punhos cerrados, algo ainda mais afrontoso (parecia a saudação comunista). Juntou-se ainda o guarda-redes Azevedo, do Sporting, que encolheu ligeiramente os dedos (curiosamente, muitos anos mais tarde, Azevedo viria a confessar que era também adepto do Belenenses... para além de vir do Barreiro, como Quaresma). A seguir ao jogo todos eles foram detidos pela polícia política (a PVDE) para interrogatório.
Como contou Quaresma uns anos mais tarde (Record, Janeiro de 2004):
"Fomos à Pide e eles ficaram. Eu, deixando o braço em baixo, disse que me esquecera de o levantar. Não houve mais problemas porque o Belenenses moveu influências. Nunca fui político, mas embirrava com aquelas coisas do fascismo. O Barreiro era foco de comunistas opositores ao regime e eu era amigo de muitos. Mas fiz aquilo sem premeditação, foi um acto natural."

Há uns anos, numa tertúlia de Belenenses (promovida pela Mailing List do Belenenses) tivemos o privilégio de contar com a presença de Quaresma, que recordou aquela história, com emoção. Amaro e Simões acabaram também por ser libertados, embora fossem mais “activos” na sua contestação. Mas eram jovens, já famosos, e os bons ofícios de gente ligada ao Clube ajudaram a resolver o caso. Fica ainda o rocambolesco da revista “Stadium”, que publicou uma fotografia “retocada” do alinhamento, com uns toscos dedos esticados acrescentados às mãos dos jogadores! (é caso para falar em censura de dedos censurados – sendo que Quaresma “ganhou” um braço!).
Mais adiante falaremos destes jogadores, sem prejuízo do muito que já se escreveu a seu respeito (recomendo em especial os textos publicados no site oficial do Clube).
Por agora fica a idéia, indiscutível, que a equipa do Belenenses de 1945/46 contava com elementos nada queridos pelo regime.


O Belenenses já era grande

Cingindo-me agora aos aspectos "meramente" desportivos, era um dado adquirido que o Belenenses "pré-1946" era já um Grande. Fundado em 1919 por um dos maiores génios do futebol português, Artur José Pereira, alcançou em poucos anos o topo. E o papel de Artur José Pereira fez-se sentir mesmo até 1946, isto apesar de trágica e ironicamente ter falecido poucos anos antes (em 1943) e de ter abandonado as suas funções de treinador das camadas jovens do Clube em 1937/38 (curiosamente foi em 1945 que Cândido de Oliveira o elegeu como “o melhor jogador português de todos os tempos”).
Augusto Silva, o treinador campeão de 1946, era considerado como o maior discípulo de Artur José Pereira. Como jogador, foi o grande líder da equipa após a retirada de Artur, e um dos "Leões de Amesterdão" (Jogos Olímpicos de 1928). Foi também ele que assumiu definitivamente o comando como treinador após a retirada do mestre, após uma breve mas solidária passagem de Cândido de Oliveira (entre outras coisas, fundador do jornal "A Bola" – em 1945, curiosamente - e do Casa Pia Atlético Clube).
Augusto Silva e o também ex-jogador azul Rodolfo Faroleiro (treinador principal em 1941/42 e 1942/43, sendo depois o adjunto de Augusto Silva) deram continuidade ao valiosíssimo trabalho de prospecção e formação de novos talentos – a esmagadora maioria ainda “made in Belém” - bem como aos exigentes métodos de treino e preparação física. No entanto, foi ainda o próprio Artur Pereira a descobrir, por exemplo, o talento do grande Mariano Amaro!
Não se pode ignorar também o contributo do lendário Scopelli, que revolucionou o futebol português enquanto jogador-treinador do Clube (assumiu o cargo de treinador na época de 1939/40, sucedendo a uma breve passagem de Lippo Hertzka, sendo também o treinador em 1940/41).
Augusto Silva retomou o seu cargo como principal treinador para a época de 1944/45, após a curta passagem do húngaro Alexandre Péics.

Pelo caminho, o Belenenses conquistou 3 Campeonatos de Portugal (tantos quanto Benfica e só menos um que Porto e Sporting), 5 Campeonatos de Lisboa e uma Taça de Portugal. Aliás, nos triunfos precedentes, obtidos na década de 40 (um Campeonato de Lisboa em 1943/44 e a Taça de Portugal em 1941/42) já haviam estado presentes alguns dos campeões de 1946. Foram os casos de Serafim, Feliciano, Amaro, Quaresma, Gomes, Rafael, Elói e José Pedro, formando assim uma equipa extremamente jovem.
Assinale-se também que na mesma época de 1945/46 o Belenenses conquistou também outro Campeonato de Lisboa (o 6º), vincando assim a sua supremacia total na época.

Para comprovar ainda o valor da nossa equipa é de destacar o convite feito pelo Real Madrid para a homenagem ao seu jogador Alonso. Em 15 de Maio de 1945, o Belenenses alcançou um espantoso empate em Madrid (2-2), sendo que no jogo de retribuição, nas Salésias, foi conseguido novo brilharete: vitória por 1-0. Mais tarde, depois da conquista do título, viria honra ainda maior: o convite para a inauguração do novo estádio do Real Madrid (o renovado Chamartín, então baptizado "Santiago Bernabéu" - o presidente "merengue", a quem se deveu o convite).

No historial do próprio Campeonato Nacional da 1ª Divisão, se até 1946 o Belenenses ainda não o tinha vencido, também é verdade que pouco faltou, adivinhando-se que o título chegaria mais cedo ou mais tarde (como chegou). Senão repare-se nas classificações obtidas:

1944/45 – 3º lugar em igualdade pontual com SCP (2º), a 3 (!) pontos do campeão SLB
1943/44 – 6º lugar (uma época então considerada como muito “má”, atente-se), atrás de SCP, SLB, Atlético, FCP e Olhanense
1942/43 – 3º lugar, 2 pontos (!) atrás do campeão SLB, 1 ponto atrás do SCP (2º)
1941/42 – 3º lugar, 8 pontos atrás do campeão SLB, 4 atrás do SCP (2º)
1940/41 – 3º lugar, 4 pontos atrás do campeão SCP, 1 ponto atrás do FCP (2º)
1939/40 – 3º lugar, 9 pontos atrás do campeão FCP, 7 atrás do SCP (2º)
1938/39 (1ª edição “oficial”) – 4º lugar, a 10 pontos do campeão FCP, a 9 do SCP (2º) e 8 do SLB (3º)
1937/38 – 5º lugar, a 13 pontos do campeão SLB, a 13 do FCP (2º), 12 do SCP (3º) e 1 do Carcavelinhos (um dos “antepassados” do Atlético)
1936/37 – 2º lugar, a 1 (!) ponto do campeão SLB
1935/36 – 4º lugar, a 4 pontos do campeão SLB, a 3 do FCP (2º) e 1 do SCP (3º)
1934/35 – 4º lugar, a 4 pontos do campeão FCP, a 2 do SCP (2º) e 1 do SLB (3º)

Em suma, nas 11 épocas até então disputadas, só por 5 vezes esteve o Belenenses afastado dos 3 primeiros lugares; nas restantes 6 vezes ficou muito, muito próximo do primeiro lugar; e em 3 dessas ocasiões terá mesmo falhado o título por muito, muito pouco (1936/37, 1942/43 e 1944/45). Logo na época anterior (1944/45), não fossem dois golos duvidosamente anulados por um fiscal de linha em jogo contra o Sporting, teríamos sido já campeões (foi… o Benfica).
Repito, um sucesso azul adivinhava-se. Ainda que, como já antes e como seria depois, seria de esperar que terceiros tentassem impedi-lo por todos os meios.


O Campeonato

O Campeonato de 1945/46 tinha uma dificuldade acrescida. Foi definitivamente abandonado o número de 10 equipas concorrentes (em vigor desde 1942/43, depois de serem 8, e após duas outras tentativas em 1939/40 e 1941/42 [neste caso com 12]), com o alargamento para 12 equipas. Para concretizar o alargamento, apenas havia descido o Salgueiros (último em 1944/45) e foram promovidos Sport Lisboa e Elvas (feito histórico da equipa alentejana), Boavista e Oliveirense.

Na primeira volta, o Belenenses cedo “embalou” para o primeiro lugar, só conhecendo a derrota à 8º jornada, no terreno do Benfica (venceu este por 2-0). No campo do Sporting (do Lumiar), na primeira jornada, empatámos (1-1). Novo empate, já só na 7ª jornada, frente ao Atlético.
Pelo meio, algumas vitórias expressivas, como se pode constatar na lista completa dessa 1ª volta:

1ª jornada – Sporting (fora): E 1-1
2ª jornada – Académica (casa): V 7-0
3ª jornada – Boavista (casa): V 6-1
4ª jornada – Oliveirense (fora): V 0-1
5ª jornada – V. Guimarães (casa): V 5-1
6ª jornada – V. Setúbal (fora): V 1-4
7ª jornada – Atlético (casa): E 2-2
8ª jornada – Benfica (fora): D 2-0
9ª jornada – FC Porto (casa): V 3-2
10ª jornada – Olhanense (fora): D 2-0
11ª jornada – SL Elvas (casa): V 5-2

O Belenenses resistiu até meados de Fevereiro de 1946 à frente do campeonato, altura em que a derrota em Olhão permitiu a ultrapassagem por Benfica e Sporting. Note-se que a equipa do Olhanense era fortíssima – acabou em 4º lugar! – e aliás o nosso jogador campeão Gomes havia sido recrutado por lá, por exemplo.

Destaque ainda para o jogo com o Futebol Clube do Porto. Estando por duas vezes a perder, o Belenenses acabou por dar a volta e vencer por 3-2, com um “hat-trick” de um jovem avançado-centro que havia vindo dos juniores (com 18 anos!) e fazia a sua estreia precisamente nesse dia: Manuel Andrade. Era o elemento mais jovem da equipa, vindo a tornar-se no seu melhor marcador, com 19 golos!

Na segunda volta o Belenenses foi… simplesmente implacável. Somou apenas vitórias... até à vitória final!

Começou logo por ultrapassar de novo o Sporting (salvo erro treinado pelo próprio Cândido de Oliveira, benfiquista confesso), ao vencer por 2-1 nas Salésias. De acordo com o jornal “A Bola”, conta-se que antes do início do jogo “dirigentes leoninos dirigiram-se ao centro do terreno enlameado para entregaram aos directores 'azuis' uma cigarreira de prata que pertencera a Pepe e que não se soube como fora parar ao Sporting. Por causa dessa mais ou menos grotesca 'cerimónia oficial' a partida começou com quinze minutos de atraso!”.
Muito estranho mesmo! Pobre Pepe! Mas terá sido um talismã…
A primeira parte acabou sem golos. Depois adiantou-se o Sporting no marcador graças a um infeliz auto-golo de Serafim para a vantagem. Os Belenenses cerraram os dentes e não desistiram. Foi Andrade, o “miúdo”, a conseguir o empate. O golo da vitória foi obra de Rafael. O Sporting ficaria assim definitivamente arredado da “corrida” ao título.

Na 15ª jornada há a destacar a goleada infligida à Oliveirense nas Salésias, por 10-0! Este resultado ocupa ainda hoje o 6º lugar no “ranking” de goleadas conseguidas pelo Belenenses em provas oficiais nacionais. Nesta edição do campeonato, porém, o “record” foi para um autêntico massacre do Atlético às mão do Porto, por 11-0!

O jogo decisivo para que o Belenenses tomasse a dianteira decorreu na 19ª jornada, com a vitória por 1-0 frente ao Benfica. O jogo realizou-se nas Salésias, por imposição do Belenenses, face à vontade de alguns em deslocar o encontro para o Estádio Nacional, para garantir mais receitas.

Na jornada seguinte, o Belenenses passou mais uma “prova de fogo”, derrotando o Porto no Porto por 0-1. Curiosamente, enquanto decorria o Benfica-Boavista, em Lisboa, alguém resolveu lançar o boato que o Belenenses tinha empatado, conseguindo assim animar um encontro que já estava bem “morto” (o resultado já era 4-2 e assim ficou).

Aqui fica a lista completa de resultados, até à penúltima jornada:

12ª jornada – Sporting (casa): V 2-1
13ª jornada – Académica (fora): V 1-3
14ª jornada – Boavista (fora): V 1-4
15ª jornada – Oliveirense (casa): V 10-0
16ª jornada – V. Guimarães (fora): V 2-4
17ª jornada – V. Setúbal (casa): V 3-2
18ª jornada – Atlético (fora): V 2-4
19ª jornada – Benfica (casa): V 1-0
20ª jornada – FC Porto (fora): V 0-1
21ª jornada – Olhanense (casa): V 6-0

Vingada a derrota em Olhão por expressivos 6-0, o Belenenses ficou a uma vitória de distância do tão almejado título. Atrás espreitava o Benfica, com apenas menos um ponto e vantagem no caso de empate pontual.


A épica jornada de Elvas

Tudo se conjurou então para um dramático Domingo de futebol. A 26 de Maio de 1946, em Elvas, o Belenenses deveria tentar vencer o Sport Lisboa e Elvas, sendo dada por quase certa a vitória do Benfica frente ao Atlético.

Sport Lisboa e Elvas que, como o nome indicava, era filial do próprio Benfica. Consta aliás que os benfiquistas terão enviado um técnico seu para assegurar as melhores condições da equipa do SLE frente ao Belenenses. Em vão, felizmente. Como curiosidade, na época seguinte o SLE, a braços com dificuldades financeiras, pediu auxílio à casa-mãe. Estes, numa postura que já lhes era habitual, disseram que não tinham dinheiro para dar. Profundamente desiludidos com a atitude do Benfica os dirigentes do Sport Elvas decidiram proceder à ruptura com a casa-mãe e à fusão do seu clube com outro clube da cidade, curiosamente também bastante descontente com os “apoios” da sua casa-mãe: o Sporting Clube Elvense, filial do Sporting. Nasceu assim “O Elvas” Clube Alentejano de Desportos, sem filiação! (onde viriam a passar muitos ex-Belenenses).

Pelo contrário, o Clube de Futebol “Os Elvenses” era (e ainda é) desde Novembro de 1924 filial do Belenenses - a primeira do Clube! - filiação escolhida na altura por precisamente já existirem duas filiais de outros dois “grandes” de Lisboa. Parte dos elvenses também apoiaram assim o Belenenses naquele jogo. E desde então fortaleceram ainda mais a sua relação com a casa-mãe - ao contrário das filiais dos “vizinhos” de Lisboa! – como eu próprio pude comprovar num almoço de confraternização no âmbito de uma “Volta Azul a Portugal”, promovida pelo Belenenses. Aproveito para saudar de novo não só esses elvenses mas também os azuis de outras localidades que estiveram presentes, como o Crato, Avis e Arronches!
A nossa filial elvense é o melhor exemplo da implantação que o Belenenses tinha por todo o país, fruto dos sucessos alcançados logo desde a fundação. E a esse jogo decisivo em Elvas acorreram também adeptos azuis das mais variadas partes.

Naquele tempo chegar à “raiana” Elvas desde Lisboa era ainda um desafio considerável, não existindo obviamente a auto-estrada através da qual se faz hoje a ligação em pouco mais de 2 horas. Já existia desde há bastante tempo ligação ferroviária via Entroncamento (como ainda é hoje) mas, avaliando pelos horários (e máquinas) actuais, essa viagem pode levar cerca de 6 horas e meia. Na altura seria mais, seguramente.
Quanto aos automóveis, eram na altura um bem só acessível a uma minoria, sendo que a considerável “expedição” azul distribuiu-se assim em muitas “boleias”. A própria equipa do Belenenses teve de ser deslocar em carros particulares, pois naquela altura o Clube ainda não dispunha de autocarro.
O percurso terá sido o da Estrada Nacional nº4, tendo passado por Vila Franca, daí até Pegões (ainda EN10), depois seguindo por Vendas Novas, Montemor-o-Novo, Arraiolos (ou Évora), Estremoz, Borba e, finalmente, Elvas. No total, cerca de 230 quilómetros de distância. Considerando que na época uma velocidade máxima de 100 Km/h era ainda uma relativa extravagância (daí a expressão “a 100 à hora”, hoje quase “passo de caracol” para muita gente), estaríamos a falar de quase 5 ou mais horas de viagem.

Voltando de novo ao nosso adversário, foi a primeira equipa alentejana a chegar ao Campeonato Nacional (precisamente o de 1945/46), um feito sensacional para a época. “Aguentou-se” no escalão principal até 1950 (já como Elvas CAD desde 1947), cabendo ao Lusitano de Évora retomar a presença do Alentejo alguns anos depois.
A estrela de então era um homem da terra (como a totalidade ou quase totalidade da equipa), o avançado-centro Patalino. Posteriormente a própria cidade de Elvas prestou grande homenagem a este jogador (que chegou a ser internacional por 3 vezes, mesmo sendo jogador do Elvas – facto que também perturba os que hoje só concebem uma Selecção a partir dos “três”), inaugurando um busto com a sua figura.

Nessa tarde o Belenenses alinhou com: Manuel Capela, Vasco de Oliveira, António Feliciano, Francisco Gomes, Serafim Neves, Mariano Amaro, Mário Coelho, António Elói da Silva, Armando Correia, Artur Quaresma e Rafael Correia. Augusto Silva, como já referimos, era o treinador. Oficial de marinha e figura de grande destaque nas glórias azuis dos anos 20 (foi companheiro de Pepe e também protagonista dos primeiros “quartos de hora” à Belenenses), imprimia aos treinos da equipa o rigor da preparação física militar, um dos principais motivos do sucesso. Mais tarde o guarda-redes Capela justificou mesmo que o posterior êxito “ficara a dever-se às duas duras sessões de treino semanais, «uma de ginástica e outra de bola», que todos os jogadores «faziam com sempre renovado prazer na emoção das Salésias», antes ou depois de mais um dia de trabalho” (A Bola). Augusto Silva que naquela altura - e até ao triunfo de Matateu – era ainda o jogador do Belenenses com mais internacionalizações (21)!
Capela (o Guarda-redes), Vasco e Feliciano (os defesas) eram então conhecidos como as “Torres de Belém”, quer pela sua estatura (deveras impressionante a de Capela) quer pela quase inexpugnável muralha defensiva que formavam em campo.
Mariano Amaro era o capitão e pelo seu valor se deduzia o grande valor do conjunto. Como médio direito era especialista em “cortar” o jogo dos adversários, “secando” muitas vedetas dos rivais. Tornou-se um dos jogadores mais populares do Belenenses e de Portugal.
Francisco Gomes e Serafim completavam uma linha média de respeito. Lá na frente estariam Mário Coelho, Elói, Armando, Quaresma e Rafael. A propósito da forma como jogavam, Quaresma revelou mais tarde uma “gracinha” dos colegas de defesa: "Costumavam dizer que, como trocávamos a bola durante tanto tempo lá à frente, eles até podiam fazer jogos mais descansados!". E ele mesmo, Quaresma, era uma das maiores referências.

O jogo não poderia ter começado da pior maneira para o Belenenses: o elvense Patalino inaugurou o marcador com pouco mais de um minuto decorrido. Pior ainda, até ao intervalo o Belenenses foi uma equipa completamente assomada pelos nervos, apática e desorientada. Pelas palavras de Artur Quaresma:
“O Patalino marcou e a maioria dos nossos jogadores tremeram. Ao intervalo, o moral estava de rastos. Alguns companheiros ficaram desorientados e até o grande Amaro, o capitão, foi-se abaixo. O Vasco e eu, que éramos mais descontraídos e frios, começámos a puxar por eles.”
Amaro, segundo contaram os colegas, chegou às lágrimas, desesperado e desorientado. E foram de facto Vasco e Quaresma, mas também José Pedro e Rafael, os que mais tentaram animar a equipa, mantendo viva a esperança.
Na segunda parte e com as notícias dos golos que asseguravam a vitória do Benfica (4-2) o Belenenses finalmente ressuscitou. Com Vasco a dar o “mote”, como relatou Artur Quaresma:
“O Vasco mostrou grande vontade de vencer e na segunda parte praticamente ganhou o jogo. Fez uma corrida diabólica pelo lado direito, deu-me a bola e fiz o golo. A equipa começou a animar e conseguiu o 2-1.”
Segundo certos registos o golo de Quaresma surgiu aos 66 minutos, enquanto o segundo golo, da autoria de Rafael – também “servido” por Vasco – teria sido aos 75 minutos. Outra versão fala do golo de Quaresma aos 75 minutos com o golo de Rafael “cinco minutos depois”. Neste caso enquadra-se perfeitamente nos famosos “15 minutos à Belenenses”. Mas independentemente dos minutos, foi um final de jogo “à Belenenses”.
Em ambos os golos, o ímpeto e a garra de Vasco. Por sinal um adepto adversário ainda o tentou agredir, partindo um chapéu-de-chuva nas suas costas, sem grande efeito (ou com o efeito contrário ao desejado!).
No final do jogo os jogadores azuis abraçaram-se no centro do campo, desfeitos em lágrimas. Amaro, o que mais tinha sofrido, foi o que mais exultou. Disse depois Feliciano: “Quando terminou o encontro de Elvas estávamos todos arrasados, completamente exaustos, mas mesmo assim ainda tivemos ânimo para chorar de felicidade, como Madalenas inconsoláveis. Tinham sido os mais emocionantes 15 minutos à Belenenses...”

O regresso a Lisboa foi apoteótico. Os carros particulares que transportavam os jogadores logo ficaram retidos no Cais do Sodré. Como contou José Sério, então guarda-redes suplente:
“Os carros foram obrigados a parar e o trajecto até Belém foi lento, com muita gente nas ruas a agitar bandeiras".
Chegados a Belém foi a vez das obrigatórias três voltas à estátua do “padrinho” Afonso de Albuquerque (“nunca mais se viu uma festa tão bonita na Praça Afonso de Albuquerque”, diria Quaresma). A festa continuou depois na sede do Clube.


Balanço da época

Na tabela final as equipas ficaram assim ordenadas:

1º Belenenses, 38 pontos
2º Benfica, 37 pontos
3º Sporting, 32 pontos
4º Olhanense, 27 pontos
5º Atlético, 21 pontos
6º Porto, 20 pontos
7º Setúbal, 18 pontos
8º Guimarães, 18 pontos
9º SL Elvas, 17 pontos
10º Académica, 16 pontos
11º Boavista, 12 pontos
12º Oliveirense, 8 pontos

O Belenenses venceu 18 jogos, empatando 2 (1 empate em casa, 1 fora) e perdendo apenas outros 2 (ambos fora). Marcou um total de 74 golos, só sendo superado pelo Benfica (82). Só nas Salésias foram marcados 50 golos, tendo sido a equipa que mais golos marcou em casa. Em matéria de golos sofridos fomos “senhores” absolutos, com apenas 24.


As outras contas do título

Segundo o jornal “A Bola”, o título conquistado significou um prejuízo de 282 contos para o Belenenses (supomos que referentes ao exercício de 1946 - e não incluiriam apenas os gastos relacionados com o futebol), o que para a época era considerável. As despesas chegaram a 957 contos, mais que, por exemplo, as do Benfica (915 contos). Outros tempos! No entanto, os benfiquistas contaram com maior volume de receitas, com 834 contos, enquanto o Belenenses havia conseguido apenas 668 contos.
No entanto há que realçar alguns aspectos. Em 1945, por exemplo, o lucro do exercício havia sido de 238 contos.
Feitas as contas (recorde-se por exemplo que os subsídios mensais aos jogadores não chegavam a 500 escudos e que os prémios haviam sido de 4 000 escudos), chega-se à conclusão que as despesas com plantel e treinador mal superavam metade das despesas totais! Outros tempos também…
Em termos de deslocações para fora de Lisboa o campeonato de 1945/46 implicou duas viagens ao Porto, uma a Guimarães, uma a Coimbra, uma a Oliveira de Azeméis, uma a Olhão, uma a Elvas e uma a Setúbal. Nada comparável com os dias de hoje (em número) mas considerando as vias e meios de transporte disponíveis (carros particulares), deveriam ter um peso significativo. Para mais quando as privações do pós-guerra ainda se faziam sentir.
Até 1949 o Clube foi diminuindo os seus prejuízos, sendo que nesse exercício voltou a aos lucros (cerca de 65 contos). Era Presidente Acácio Rosa, que alarmado com a proliferação do profissionalismo e a precariedade das receitas conseguiu levar a cabo uma contenção de custos significativa. Pena é que, tendo sido campeões, as receitas não viessem a registar um “salto” para os níveis dos nossos adversários…
Um elemento fundamental era o número de sócios. As campanhas até ao título conquistado permitiram um aumento significativo, embora viesse a ser… algo efémero. Chegados aos 9 000 sócios (eram 6 793 em 1945!) foi depois lançada uma campanha para alcançar os 12 000 mas… o crescimento foi lento, muito lento…

Quem eram e o que foi feito dos campeões

Salvo erro, dos campeões de 1946 e à data estarão ainda vivos José Sério, António Feliciano, Mário Sério, Artur Quaresma e Manuel Andrade. Aliás a 6 de Maio de 2001, antes de mais um Belenenses-Sporting, foram estes jogadores homenageados pelo Clube, para além de José Pedro, que entretanto e infelizmente já terá falecido. Quanto a Artur Quaresma, é presença assídua no Restelo, tendo eu tido a oportunidade (e o privilégio) de conversar com ele a 17 de Junho de 2000, no chamado “almoço histórico” da Mailing List do Belenenses. Dele falarei adiante.

Começando pelas “Torres de Belém”, o guarda-redes Capela infelizmente foi um dos jogadores que de certa forma decepcionou os Belenenses. Pouco tempo depois apareceu na Académica de Coimbra, com o pretexto de prosseguir os seus estudos de Letras. Segundo Homero Serpa esta vontade não era nova e se não fosse um seu tio (um grande Belenense) a interceder em épocas anteriores, mais cedo teria deixado o Belenenses. A única contrapartida que o nosso Clube conseguiu foi a de que caso Capela viesse a sair da Académica, seria apenas para o Belenenses (deixando Sporting, Benfica e Porto sem hipóteses). Não se verificou e Capela ainda chegou a tornar-se uma lenda na Académica, chegando também a internacional (5 vezes). Acabava assim a primeira versão das “Torres de Belém”. Totalizou 51 jogos pelo Belenenses em Campeonatos.

Quanto a Vasco, continuou no Belenenses. Em 1949 decidiu terminar a sua carreira, mas Acácio Rosa conseguiu convencê-lo a continuar. Era um jogador frequentemente injustiçado pelo seu temperamento e impetuosidade. No seu regresso, disse:
“O público foi, em muitas ocasiões, injusto para comigo. Em quase todos os jogos eu era assobiado, e na maioria das vezes, sem razão. Isto custava-me muito e, creia, era para mim motivo de grande tristeza. Sempre tive a fama de jogador violento, de temperamento exaltado e de outras coisas mais, mas, pode acreditar, nunca joguei com o intento de magoar os adversários! É certo que o entusiasmo com que sempre joguei poderia dar essa impressão, mas que eu tivesse o intento propositado de magoar, de ser violento, não é verdade.”
Fez um total de 98 jogos pelo Belenenses em Campeonatos, contando com 2 internacionalizações (em 25 de Maio de 1947 e 21 de Março de 1948). O “Barrote”, como ficou conhecido, veio a falecer a 8 de Março de 2000, merecendo as devidas palavras públicas de apreço por parte do Clube. Quis ao seu Belenenses como poucos. Recebeu por parte do Belenenses, em 1949, a medalha de “Mérito e Valor Desportivo”.

Feliciano, por sua vez, protagonizou um dos mais emblemáticos episódios de apego ao Clube. Nascido na Covilhã a 19 de Janeiro de 1922, cedo ficou órfão de pai, vindo a ingressar na Casa Pia. De seguida transcrevemos o texto do jornal “A Bola”, do livro “100 figuras do futebol português”:
“Depressa passou para a equipa de honra do Casa Pia. Deu nas vistas e o Benfica interessou-se. Nessa altura já jogava como terceiro-defesa. E foi num jogo com o Benfica, para a Taça de Portugal, nas Salésias, que o seu destino ficou marcado. Alejandro Scopelli assistiu à partida e ficou deslumbrado com o defesa-central. Era o homem que procurava para substituir Tarrio. Mas, através de Miguel Siska, do Porto, outro canto de sereia. «Cheguei a estar hospedado na Pensão Alegria uns 15 dias. Mas senti-me deslocado, muito pequenino ao pé de jogadores como Carlos Pereira, Pinga, Guilhar, Pocas, Novas e, por isso, sem dar cavaco, meti-me no comboio e voltei para Lisboa.»
Como Scopelli lhe tinha dito que aparecesse pelas Salésias, foi. Os gansos tinham uma dívida de gratidão a pagar aos homens da Cruz de Cristo: quando, para a Exposição do Mundo Português, o seu campo do Restelo foi destruído por ordem governamental, o Belenenses colocou-lhes as Salésias à disposição. Por isso, para libertarem Feliciano pediram... três contos. Assinou-se o acordo a uma mesa da Brasileira do Chiado, ficando Feliciano com a garantia de um ordenado mensal de 300 escudos. «Nos meus primeiros tempos no Belenenses arranjaram-me um emprego no Grémio dos Armazenistas de Mercearia. O emprego trouxe-me um pequeno problema: eu não tinha um fato para vestir e não podia, como é evidente, ir para o Grémio fardado com o uniforme da Casa Pia. Valeu-me na emergência Francisco Silva [director do Grémio e do... Sporting]. Ofereceu-me um casaco, uma camisa e uma gravata. Estava salva a situação. Com as calças do fardamento, o enxoval ficou completo»...
O seu primeiro treinador no Belenenses foi Artur José Pereira, que, apercebendo-se de que Feliciano só chutava com o pé esquerdo, o obrigava a jogar apenas com uma bota calçada. Estreou-se contra a Cuf, com uma vitória por 6-0, numa partida histórica em que Horácio Tellechea marcou os seis golos da equipa e, em 1943/44, alcançou o seu título: campeão de Lisboa. Dois anos depois, com o seu célebre oitavo exército, o Belenenses sagrava-se campeão nacional. Era o tempo das Torres de Belém. Vasco, Feliciano e Serafim.”
Feliciano estreou-se com a nossa camisola a 29 de Setembro de 1940. Ele que sentiu a vitória de 1946 como uma “recompensa de Deus por uma partida do destino: não muito tempo antes não pôde alinhar contra a Espanha, no Estádio Nacional, por ter «engordado dois quilos durante o estágio». A mágoa andou consigo durante semanas e semanas. Mas, aquela «tarde mágica» de Elvas tudo apagou.” (A Bola).
Mas até aquela altura Feliciano era um jogador que não hesitava em assinar ficha pelo Clube mal acabava a época, sem olhar a nada mais (“nunca lhe pedindo um tostão [ao Belenenses]”). Acontece que como campeão e estando de férias na Corunha, recebeu uma proposta deveras tentadora. O Celta de Vigo (há quem diga que foi o Vasco da Gama, do Brasil, mas isso foi mais tarde – proposta recusada, claro!) adiantou um salário mensal de 3 000 pesetas. Note-se que havia recebido 4 contos só pela conquista do campeonato e recebia 300 escudos mensais do Belenenses para ajudar às despesas! No entanto e antes de tomar uma decisão, foi ter com Acácio Rosa. Ao que parece, ainda foi elaborada uma contra-proposta para o Celta, em que se previa o pagamento de 200 contos ao Belenenses mais 200 contos à cabeça para Feliciano. Mas no fim Acácio Rosa convenceu António Feliciano, implorando-lhe em lágrimas: “Põe-te no meu lugar, António. Estás a pedir-me para deixar ir um ídolo dos nossos adeptos!”. Feliciano, sensibilizado, acedeu: continuou no Belenenses e jamais representaria outro clube. Pela decisão recebeu ainda 5 contos, enquanto manteve o seu emprego no Grémio dos Armazenistas de Mercearia.
Em 1947, depois de excelentes exibições na Selecção (incluindo uma memorável vitória por 4-1 sobre a Espanha), chegou a ser considerado pela conceituada revista francesa “L’Équipe” como o melhor central da Europa. Contou 14 internacionalizações, entre 1945 e 1949.
A propósito, aqui fica um episódio bem engraçado, como relatado em “100 Figuras do Desporto português” (A Bola): “Quando se estreou na Selecção, o que mais estranhou foi ver os jogadores mais cotados, os ídolos com quem poderia, enfim, privar como par entre pares, a dizerem, amiúde, que estava na hora de irem lavar os dentes. Era a senha secreta para fugirem ao controlo do seleccionador e irem jogar cartas pela noite dentro. Foi na Corunha que fez o seu debute com a camisola das quinas. «Fomos num autocarro especial, como a deslocação maçava e podia dar lugar ao adormecimento dos músculos, apeávamo-nos de vez em quando e fazíamos um pouco de footing com sprints intervalados, à borda da estrada.» Nesse jogo competir-lhe-ia marcar Zarra. Um monstro. Peyroteo casara havia pouco tempo. Tivera permissão para levar a mulher com ele. Em jeito de... lua-de-mel. Pouco antes do jogo a senhora abeirou-se de Feliciano e deu-lhe uma santinha. Para que tivesse sorte. «Fiquei comovido. E nunca mais me separei da santinha. Joguei com ela na algibeira do calção. Saí-me tão bem que o dr. Tavares da Silva se agarrou a mim a chorar.» A santa jamais largaria. Ficou sua mascote.
Não muito depois, na vitória de Portugal sobre a França, por 2-1, foi considerado o melhor defesa da Europa e nunca mais se esqueceu da jornalista francesa que lhe pregou um quente beijo como sinal de admiração!”
Mais tarde deu-se um outro episódio cómico com Feliciano, tal como se pode ler na mesma publicação do jornal “A Bola”:
“Por essa altura, uma das cenas mais incríveis da sua vida. Por Belém correu o rumor de que tinha sido... assassinado. Assassinado fora, de facto, outro desportista, António Feliciano como ele. Foi José Maria Pedroto quem lhe deu a notícia da sua... morte. Feliciano explorava o bar da delegação do Belenenses na Avenida da Liberdade, onde os jogadores almoçavam ao domingo, antes dos jogos. Foi para o jogo. Contra o Estoril. Já toda a gente em Belém sabia que fora boato. Mesmo assim, quando pisou o relvado das Salésias estrugiram as palmas. O Belenenses ganhava ao Estoril por 1-0. Feliciano tentou fazer um rodriguinho, perdeu a bola para Bravo, o primeiro português a transferir-se para Espanha, que marcou o golo do empate. «Os sócios da superior desataram aos berros e eu ouvi, distintamente, os fulanos dizerem: porque é que este gajo não morreu mesmo?»”
Já só em 5 de Setembro de 1954 se deu a despedida, com a devida homenagem do Clube. Em sua honra, o Belenenses venceu o Atlético por 4-0. É um dos maiores recordistas do Belenenses, com 294 presenças e 24 golos marcados em Campeonatos. Pouco tempo depois abraçou a carreira de treinador em vários clubes, sendo posteriormente apanhado de surpresa quando se preparava para treinar o Portimonense (1965), com um convite para treinar as camadas jovens do Futebol Clube do Porto. Assim foi, entrando para a história do clube nortenho, ao conquistar vários títulos das camadas jovens. Só em 1988 cessou as suas funções no F.C.P., tendo sido alvo de uma grandiosa homenagem por parte dos portistas em 1985. Em 1986 foi agraciado com a medalha de “Bons Serviços Desportivos”, tendo recebido anteriormente a medalha de “Mérito e Valor Desportivo” por parte do Belenenses. Ainda hoje vive na “Invicta”, com o seu sorriso de sempre.

José Sério, como suplente de Capela, não teve em 1945/46 grandes oportunidades (jogou por 3 vezes). No entanto, com a saída de Capela viria a descobrir-se como o “4º mosqueteiro”, o 4º elemento das “Torres de Belém”, na sua versão renovada (Homero Serpa). Viria a realizar 144 jogos de Campeonato pelo Belenenses, em 7 épocas como titular indiscutível. Sob uma ingrata comparação com Capela por vezes não terá tido o reconhecimento devido, mas efectivamente tornou-se num dos guarda-redes com mais história no Clube. Só viria a ser substituído como titular já em 1954, pelo também grande José Pereira (o “Pássaro Azul”, “magriço” de 1966, também ele injustamente criticado muitas vezes). Aliás em número de jogos pelo Belenenses só mesmo José Pereira e o “Imperador” Marco Aurélio conseguiram superar a marca de José Sério. Como já referimos, ainda é um dos poucos sobreviventes de 1946.

Quanto a Amaro, viveria ainda momentos de alegrias e tristezas. Este torneiro de metais, rapaz castiço do castiço bairro de Alfama, chegou ao Belenenses para a época de 1934/35, ainda não tinha 20 anos. Ainda nas reservas ocupou várias posições até que o olho clínico de Artur José Pereira – outra vez – o fez “comandante” do centro do terreno. Estreou-se a 15 de Dezembro de 1935 como médio direito. Daí até ser aclamado pela crítica foi um pequeno passo. O jornalista Vítor Silva chamou-o o “Einstein da bola”, epíteto que daria nome a uma monografia publicada pelo Clube, elaborada pelo mesmo Vítor Silva e sob a coordenação de Acácio Rosa. Aqui fica um excerto:
“Amaro transmitiu-nos sempre a sensação de que nascera com aquilo dentro de si: um sentido de futebol fácil, fluído, natural, não só quanto a execução, mas, principalmente, quanto a uma extraordinária percepção dimensional do jogo, dentro das quatro linhas do rectângulo. Quase nos apetecia dizer, se não fôssemos ferir certos ouvidos mais sensíveis, que Mariano Amaro foi um pequeno Einstein da bola que, sem o menor esforço ou consumidora determinação, descobriu a quarta dimensão do jogo, dando-lhe uma amplitude que talvez nenhum outro jogador português soube, primeiro imaginar, e, depois, explorar como seria aconselhável.”
Recebeu inúmeras ofertas para jogar noutros clubes, mas recusou sempre, para continuar no seu Belenenses. Do livro “100 Figuras do Futebol Português” (A Bola): “Scopelli, dizendo-lhe que tinha lugar em qualquer equipa do Mundo, quis levá-lo para a Argentina. «Estive meio tentado, mas a mulher pediu-me muito para não ir, não fui.» Várias vezes lhe acenaram com muito dinheiro do Sporting. E do F. C. Porto. «Foi o Pinga que me quis levar, disse-me que iria ganhar o mesmo que ele. Nessa altura ele recebia um conto e quinhentos por mês a posta de bacalhau custava 15 tostões.» O coração fê-lo ficar outra vez nas Salésias. E perder muito dinheiro.”
Em 1948, porém, a carreira de Amaro como jogador chegaria ao fim de forma triste e algo trágica (fazendo lembrar também Artur José Pereira, quando se viu forçado a abandonar a carreira de treinador). Estava prestes a iniciar-se a final da Taça de Portugal – opondo Belenenses e Sporting – quando pelos altifalantes se soube do impedimento de Amaro, acometido de doença súbita e grave. Já não tinha sido a primeira vez, pois mesmo antes da grande conquista de 1946 (em 1944 e 1945) tinha sido aconselhado pelos médicos a abandonar o jogo. Mas esta seria a última. A sua recuperação já antes tinha sido assunto de comoção nacional, ele que havia chegado a capitão da Selecção, tendo sido internacional por 19 vezes (ainda é hoje o nosso 4º jogador com mais internacionalizações). Consta que a sua vida algo boémia, de noites curtas (ele que tinha o ar “gingão e afadistado”), em nada terá ajudado à tuberculose. Escreveu um dia Aurélio Márcio: “Treinava-se de manhã, passava à tarde pelo café Nicola, saía com a rapariga que escolhia entre as muitas que se lhe davam, terminando a noite na jogatina. E sobre tudo isto era um jogador excepcional…”
Mas sobreviveu. Ainda chegou a pensar regressar, com 30 anos, mas não lhe foi possível.
A 26 de Novembro de 1948 veio o jogo de despedida, o “último pontapé de Amaro” (Acácio Rosa): “Rodeado pelos jogadores dos dois clubes, Amaro foi a meio campo dar o pontapé simbólico para o começo do desafio. No momento em que o ídolo se encaminhava para a cabina, para não mais voltar, os olhos do público fixam-se no jogador, como a querer gravar aquele momento e a fixar numa só imagem toda a carreira do jogador que a encerra naquele instante: a iniciação, a ascenção, as distinções, o pedestal... e a retirada.”
Os clubes em causa eram Belenenses e Benfica, tendo-se realizado também jogos envolvendo colectivos de homenagem, como uma Selecção de 1938 vs. S.L. Saudade e um Sporting - Selecção Nacional de Novos.
A 30 de Agosto de 1965 foi-lhe feita nova e grandiosa homenagem, com direito a um “jogo da saudade”, onde se defrontaram os campeões de 1945/46 com os vencedores da Taça de Portugal de 1959/60. Em 1984, o Grupo “Os Mil” instituiu os troféus “Amaro” (na sequência dos troféus “Pepe”), tendo o próprio Mariano estado presente na cerimónia de entrega, com seu o habitual bom humor. Disse então ele que a sua mãe, se fosse viva, ainda o chamaria “capitão Amaro”, confessando por outro lado que tinha deixado de assistir a jogos de futebol, pois já estava farto que todos lhe perguntassem se já estava “melhorzinho”!
Fez 174 jogos em Campeonatos pelo Belenenses. Como treinador, passou pelo Elvas (clube sucessor do adversário de 1946!), o Oriental, Covilhã, Torreense e Vitória de Guimarães (onde conseguiu um notável 5º lugar em 1958/59, tendo lutado até ao fim com os primeiros – uma época memorável para os vimaranenses).
O “Einstein da bola” veio a falecer a 23 de Maio de 1987 (aos 72 anos), com direito a um minuto de silêncio na jornada seguinte do campeonato em todos os campos do país. O Belenenses justamente e até ao fim da sua vida havia-lhe concedido um suplemento mensal de 25 contos sendo que “pouco antes de morrer recebia de reforma da função pública nove contos por mês, porque só em 1970, falhadas as muitas tentativas como treinador, começara a trabalhar nos telefones.” (A Bola). O Clube agraciou-o com as medalhas de “Bons Serviços e Valor Clubista” e “Mérito e Valor Desportivo”, distinguindo-o como “Sócio de Mérito” em 1964.

Outra lenda de fidelidade ao Belenenses foi Serafim, que acabou por ser o recordista de todos os campeões de 1946 e um dos jogadores que mais jogos fez pelo Belenenses. Só para o Campeonato foram quase 300 jogos (298), tendo feito a sua despedida a 11 de Setembro de 1955. Desta forma ainda viria a fazer parte de outras memoráveis equipas do Clube, ao lado de jogadores como Matateu, Vicente e Di Pace. Foi internacional pela Selecção 18 vezes, entre 1945 e 1953. Infelizmente também já terá falecido. Recebeu da parte do Clube a medalha por “Mérito e Valor Desportivo”.

Artur Quaresma viria a ser outro exemplo de grande amor ao Belenenses, ele que como já referimos ainda é presença frequente no Restelo, bem como em muitos eventos da vida do Clube. Já referimos o almoço da Mailing List, mas também foi um dos nossos “embaixadores” na recente “Volta Azul a Portugal” pelas filiais.
Não havia melhor exemplo de dedicação, de um homem que “despertava de madrugada e ainda noite feita apanhava o cacilheiro [do Barreiro] para estar nas Salésias à hora do treino, trabalhando depois o resto do dia como electricista” (A Bola).
Pouco depois do título veio a despedida algo precoce (aos 31 anos), celebrada a 5 de Outubro de 1948. Num jogo de infantis, o Belenenses venceu o Atlético por 2-0. E as camadas jovens viriam a ocupar o seu futuro. Depois, como contou o jornal “Mundo Desportivo”: “O último pontapé oficial de Artur Quaresma foi no jogo da sua despedida, em 5 de Outubro de 1948, frente ao Sporting Clube de Portugal, tendo os azuis ganho por 4-1 e cabendo a Quaresma, depois da marcação do segundo golo, obter também o terceiro e último da sua carreira oficial.
Sporting: Azevedo; Moreira e Juvenal; Canário, Marques e Serra Coelho; Jesus Correia, Vasques e Peyroteo; Travassos e Albano.
Belenenses: Sério; Figueiredo e Serafim; Rebelo, Feliciano e David Matos; Matos, Nunes, Sidónio, Quaresma e Narciso.
Aos 4 minutos, Quaresma serviu Sidónio em magníficas condições, este deixou correr a bola à sua frente e sobre a meia esquerda rematou cruzado ao lado esquerdo de Azevedo: 1-0.
Depois:
De um despique entre Marques e Sidónio sucedeu que nem um nem outro ficou com a posse da bola e foi Quaresma, em corrida, quem arrancou um remate vitorioso: 2-0.
E, logo a seguir em jogada individual Quaresma, fez levantar o público, quando obteve o 3-0!
Depois, Quaresma abandonou o futebol, sendo substituído por Pinto de Almeida.
No final do jogo Quaresma ofereceu a taça com o seu nome a Serafim, mas este cedeu-a ao Capitão do Sporting, Manuel Marques, gesto que o públcio saudou com fortes aplausos.”
Em boa verdade, Quaresma veio a ser um digníssimo sucessor na formação de novos talentos “azuis”, numa notável tradição iniciada pelo próprio Artur José Pereira, passando por outras lendas como Scopelli, Rodolfo Faroleiro e Augusto Silva. Foi-lhe confiada ainda em 1947 pelo Presidente Octávio de Brito a criação das escolas de futebol, a respeito da qual afirmou a um jornalista:
“A criação das escolas foi quanto a mim uma das melhores iniciativas do Belenenses, pois é delas que podem sair os futuros bons jogadores devidamente preparados. Num clube como o Belenenses a missão de treinador é muito importante e da maior responsabilidade. Espero, no entanto, com o decorrer do tempo, fazer alguma coisa de proveito para o meu Clube.”
Em 1948/49 chegou a assumir o cargo de Treinador principal, conseguindo um bom 3º lugar.
E em 2000, precisamente sobre o que resta do saudoso campo das Salésias (ao pé da fatídica baliza de 1954/55), tive a oportunidade de conversar com Quaresma sobre a evolução do treino de jogadores. Confessou ele que não entendia a preparação dos nossos dias, com algumas corridas, uns toques de bola e pouco mais. Recordou as intensas sessões de ginástica a que eram sujeitos os jogadores do seu tempo. Treinos verdadeiramente duros, com a disciplina militar de um Augusto Silva ou o rigor de um Artur José Pereira. Recordemos, aquando de uma das memoráveis deslocações a Madrid o Belenenses chegou a impressionar a imprensa espanhola pela sua força física! Como bem sabemos o futebol português veio a menosprezar esses atributos, em detrimento da “técnica” (mais “brinca-na-areia”), algo que em anos vindouros limitaria a nossa Selecção e certas equipas em confrontos internacionais.
Quaresma contou-nos também uma outra história engraçadíssima. Parece que aos seus pupilos costumava dizer que um verdadeiro futebolista também se reconhecia pela forma… de andar! Não podia andar “à toureiro” (com os pés “para dentro”), nem “à padeiro” (com os pés virados “para fora”). Teria de ter, por assim dizer, uma forma de andar “normal”, equilibrada e fluída. Bela memória a desse almoço, em que recordou com lágrimas os companheiros já desaparecidos mais as agruras com a PIDE/PVDE.
Quaresma realizou um total de 154 jogos em Campeonatos, com uma impressionante marca de 71 golos! Foi internacional por 5 vezes, entre 1937 e 1946. Recebeu da parte do Clube a medalha por “Mérito e Valor Desportivo”.

Rafael Correia foi outro “caso” especial. Logo quando terminou o histórico jogo de Elvas, no meio de toda a emoção, decidiu ali mesmo que era já altura de abandonar o futebol, “para poder sair em beleza – campeão”, confidenciando depois que nunca julgara possível chorar-se, assim, de alegria, como naquele momento (A Bola). O verdadeiro terror das balizas adversárias, que jogava em toda a linha atacante e possuía poder de remate tremendo, consumou a sua despedida a 28 de Maio de 1948, com estas palavras: “Eu no Belenenses joguei sempre por gosto. Noutro clube, estou certo que me aborrecia de um futebol jogado por obrigação – e então teria de abandonar a actividade porque não era do meu feitio saltitar de clube para clube.”
A sua festa de despedida foi simples, “tão simples como sempre foi o Rafael. Festa de família, festa de amigos – poderemos dizer.” (Acácio Rosa):
“A abrir: um Oriental - Atlético, ganho pelo primeiro por 2-1.
Depois os miúdos azuis e um misto dos outros clubes. Um empate a zero foi o resultado do encontro entre os 22 futuros “ases”; os 22 futuros “Rafaeis”.
A seguir à cerimónia de despedida, o Dr. Octávio de Brito, em palavras de grande eloquência e fervor clubista, fez a apologia da ideia desportiva e o elogio do homenageado, enquanto Rafael ladeado por Francisco Ferreira e Bernardo Soares, depunha flores no monumento a Pepe.
Depois, viu-se Rafael assoberbado de flores e presentes.
Por último o jogo “O Elvas” [novamente, o sucessor do adversário de 1946] – Belenenses. Venceram os alentejanos por 3-2. Pela equipa do clube alinharam Gilberto, Eloy e Franklin, antigos companheiros de Rafael.”
Internacional por 6 vezes, realizou um total de 16 épocas seguidas no Belenenses, com 126 jogos para o Campeonato e a fantástica fasquia de 86 golos marcados!
Viria a falecer, ao que consta, em “condições trágicas” (Homero Serpa). Recebeu da parte do Clube a medalha por “Mérito e Valor Desportivo”.

Sobre os restantes heróis de 1945/46 pouco podemos adiantar, sendo mais escassas as informações. Eis o que conseguimos apurar:

Francisco Gomes, jogador salvo erro vindo do Olhanense (então pujante), realizou um total de 145 jogos para Campeonatos, tendo marcado 15 golos. Instalou-se em Belém, acarinhado como mais um do bairro. Ao que parece, também já terá falecido. Recebeu da parte do Clube a medalha por “Mérito e Valor Desportivo”.

António Elói (ou Eloy) da Silva viria a completar 87 jogos de Campeonato pelo Belenenses, com 37 golos marcados. Curiosamente num espaço de notícias da internet pude descobrir o depoimento de quem se diz ser filho de Elói (Alfredo Silva). Segundo as informações recolhidas, Elói terá sido ainda jogador do Braga, vindo a falecer por volta de 1980. Recebeu a medalha do Clube por “Mérito e Valor Desportivo”.

Quanto a José Pedro, Artur Quaresma viria a considerar que, junto dele próprio, de Elói, Rafael e Franklin (já não jogava no Belenenses em 1945/46), foram “a melhor linha avançada da história do clube e, pela qualidade, uma das melhores do futebol português.”
Segundo outros testemunhos (jornal Record), José Pedro foi “um artista de grande visão, driblador extraordinário que tratava a bola por tu e para quem o futebol não tinha segredos”.
Era considerando o mais "argentino" dos jogadores campeões, herdeiro da magia de Scopelli.
Fui informado através do nosso prezado consócio Pedro Patrão que José Pedro Bazaliza também já terá falecido. Fez 81 jogos de Campeonato, com um registo 42 golos marcados.

Armando Correia, “um passador exímio”, fez um total de 50 jogos em Campeonatos, com uma marca de 33 golos.

Mário Coelho viria a totalizar 56 jogos em Campeonatos, com uma marca de 24 golos.

Mário Sério (salvo erro irmão de José Sério e também ainda vivo), Francisco Martins e António Martinho, ao que parece, não terão feito muito mais jogos pelo Belenenses (Mário Sério: 18 jogos, 1 golo; Francisco Martins: 11 jogos; António Martinho: 7 jogos, 4 golos).

Quanto a Manuel Andrade, a “revelação-prodígio” de 1945/46, titular até ao fim do Campeonato depois da sua auspiciosa estreia contra o Porto, terá feito um total de 37 jogos (presumimos que apenas na época seguinte), tendo marcado um total muito interessante de 27 golos. Em 2007 conseguimos notícias suas, por uma entrevista concedida a um jornal da sua terra (Madeira). Vale a pena transcrever alguns excertos do artigo:
"Para alguns madeirenses, o nome de Manuel Basílio Ferreira Andrade, nascido em São Gonçalo, freguesia do Funchal, a 23 de Maio de 1927, pode não dizer muita coisa.
Mas, se falarmos do avançado-centro que em 1946 apontou 19 golos, em 14 jogos, ao serviço do Belenenses, e foi um dos grandes responsáveis pelo único título de campeão nacional de futebol da I Divisão até ao momento conquistado pela equipa do Restelo, serão muitos os que se lembrarão. (...) O ano de 1946 é, sem dúvida, a melhor recordação que este jogador madeirense pode ter. "Fiz a minha estreia na primeira categoria do Belenenses nesse ano, frente ao FC Porto. Estávamos a perder por 0-2 e consegui marcar três golos que deram a vitória à equipa".
"Contudo, o melhor momento estava para vir, pois três dias depois de completar 19 anos (26 de Maio), o Belenenses ganhou ao Elvas por 2-1 e conquistámos o título nacional. Sem dúvida, a melhor prenda de aniversário que já tive até ao momento", adiantou, com um grande sorriso.
Já em relação à final da Taça de Portugal, marcada para amanhã (Maio de 2007), em que o Belenenses irá medir forças com o Sporting, o antigo goleador do Restelo está a 'torcer' pela 'Cruz de Cristo', apesar de ter um carinho também pelo Sporting, onde jogou na época de 1948/1949.
Manuel Andrade está ciente das profundas mudanças verificadas no futebol entre a década de 50 e a actualidade. Contudo, admite que algo deveria ainda perdurar, nomeadamente a entrega e o amor à camisola dos jogadores, aspectos que existem pouco no futebol de agora.
"Nós não éramos profissionais e recebíamos 1.200 escudos por mês. No entanto, os jogadores possuíam uma mentalidade muito forte dentro de campo, uma técnica invejável e lutavam até à exaustão".
"Situações que hoje em dia existem pouco no futebol português e onde são poucos os jogadores que são autênticos profissionais. Penso que 75% dos atletas são apenas semiprofissionais e interessam-se muito mais em receber o ordenado no final do mês do que suar a camisola", acrescentou, ainda.
A título de exemplo, o avançado do Futebol Clube Os Belenenses admite que "muitos jogadores portugueses da actualidade não teriam lugar nas reservas de muitos clubes dos anos 50".
Manuel Andrade esteve poucos anos no futebol sénior: estreou-se em 1946 no Belenenses, onde ficou até 1949, altura em que a vinda do treinador argentino Scopelli foi motivo para mudar de ares.
"Sempre joguei como avançado e com a vinda de Scopelli, para além de ir para a equipa de reservas, fui colocado como defesa direito, um lugar que não era para mim. Ainda me lembro dos treinos conjuntos onde, para mostrar que era avançado, marcava golos na própria baliza do lado direito do campo. Uma situação que não foi entendida pelo treinador, pelo que optei por ir para o Sporting". Em Alvalade, Manuel Andrade jogou durante uma época, ainda ao lado dos cinco violinos, mas devido a questões profissionais, acabou por sair para o Estoril Praia, onde veio a terminar a sua carreira.
Ao nível dos craques do desporto-rei, Manuel Andrade relembra o seu colega do Belenenses, Amaro: "Para mim, o símbolo do Belenenses não é o Matateu mas sim Amaro, um jogador fora de série"."


Sabemos que em 1965, aquando da homenagem a Mariano Amaro, alinharam por uma das equipas do “jogo da saudade”: Capela, Vasco, Feliciano, Amaro (o próprio), Quaresma, Serafim, Mário Coelho, Elói, Armando, José Pedro, Andrade, Martinho e Mário Sério. Por outro lado em 1984, aquando da entrega dos troféus “Amaro”, é feita a referência a outros campeões que então ainda estariam vivos, como Capela e Serafim. Estranhamente nem estes nem outros dos sobreviventes foram convidados para essa cerimónia, onde esteve apenas o próprio Amaro.

Obviamente não podemos esquecer Augusto Silva, que com a conquista de 1945/46 acrescentou mais uma brilhante página na história do futebol nacional, ao ser o primeiro treinador português a conseguir o título de Campeão Nacional da 1ª Divisão. O seu grandioso passado como jogador não caberia aqui e agora, como páginas consideráveis que são da história do nosso Belenenses. Sem dúvida, um dos maiores Belenenses de sempre. Sargento da Marinha de Guerra, formou dezenas de autênticos “guerreiros” de azul.
Como treinador campeão logo foi convidado para Seleccionador Nacional. Foi ainda o treinador principal do Belenenses para a época de 1946/47 (4º lugar), sendo depois sucedido pelo regressado e igualmente lendário Scopelli. Em 1951/52 Augusto Silva regressaria ao cargo, assegurando boa parte da época como treinador principal. A esse respeito encontrámos um interessante artigo de 1951 onde ainda é visível a “marca” do grande “mestre”:

“COMEÇARAM OS TREINOS NAS SALÉSIAS
MAS, POR ENQUANTO, APENAS HOUVE EXERCÍCIOS FÍSICOS

Em Belém começou o futebol sem bola. Quer dizer: os «azuis» deram já início aos treinos, reservando as duas primeiras semanas deste mês a exercícios físicos. O contacto com a «borracha»... virá depois.
A convocação marcada, para quarta-feira, dia 1, ás 8 horas, ginástica.
Muito antes daquela hora começaram a chegar os madrugadores, ávidos de pisarem a relva fresca...
O «Manel» a todos atender com a mesma diligência, entregando a cada um, camisola, calções, meias e... alpargatas ou sapatos de borracha. Santos Varela, director do campo, sempre atento e zeloso, presenciou a entrega do equipamento.
Nos vestiários, o ambiente era familiar. Cruzámos com Augusto Silva.
- Há novidade?
- Nada de novo.
- Quando começam os primeiros pontapés na bola?
- Daqui a duas semanas.
- Até lá só ginástica, não é verdade?
Augusto Silva fez um sinal afirmativo e afastou-se, indo prevenir os jogadores que era chegada à hora de começar o treino.
Ás oito horas em ponto os jogadores deram entrada no campo juntamente com o seu professor de ginástica e nosso camarada de trabalho Serradas Duarte. Acompanhava-o o treinador Augusto Silva e o director da secção de futebol Humberto Gonçalves que fez a apresentação do novo mestre aos jogadores.” (Record, 4 de Agosto de 1951)

Curiosamente descobrimos também que Augusto Silva chegou a ser treinador principal do Santa Clara, nos Açores (e não foi o único ex-Belenense, por lá passaram também Francisco Ferreira e Júlio Amador).
Veio a falecer em 1962, sendo-lhe dedicado um eloquente artigo pelo jornalista Vítor Silva (Acácio Rosa). Foi distinguido como “Sócio de Mérito” em 1927 e também como “Sócio Honorário”, ainda em 1940.

Uma palavra ainda para:
- Carlos Pama, então o “massagista” de serviço (na verdade o fisioterapeuta de hoje em dia). Começou nas suas funções ainda em 1934, continuando ainda em 1961, então com direito a justa homenagem do Clube. Sucedeu-lhe o não menos brilhante João Silva, que já entrara no Clube em 1943.
- O Dr. Octávio de Brito, Presidente do Clube em 1945, que alicerçou um Belenenses competitivo e de reconhecimento internacional, sendo bom exemplo disso as relações privilegiadas que manteve com o Real Madrid; o Dr. Constantino Fernandes, Presidente do Clube em 1946, que também já o havia sido entre 1942 e 1944. Ambos já falecidos.
- E por fim, como não poderia deixar de ser, Acácio Rosa, esse mito do nosso Clube que às tantas com este se confundia na identidade. Foi toda uma vida ao serviço do Belenenses. Como se viu acima, teve também um papel determinante na conquista (foi vice-presidente do Clube desde 1945 até 1948) e nas justas homenagens aos campeões de 1945/46. Foi Acácio Rosa, acima de todos, que nunca esqueceu aqueles heróis.
A sua vida daria um livro, mas felizmente deixou-nos os seus livros, sobre o seu Belenenses, que mais não são do que o mais fiel retrato do seu legado.


Nota: a primeira versão deste texto foi publicada pelo autor a 26 de Maio de 2005 no blogue Canto Azul ao Sul

SÉRIE: Cinquentenário do Estádio do Restelo - Capítulo I - 4ª parte

Capítulo I: Antepassados do Estádio do Restelo
4ª parte: o adeus às Salésias


No seguimento do «ultimato» de 1946 não foi fácil nem pacífica a escolha do local para o novo estádio do Belenenses, como veremos detalhadamente no capítulo seguinte.

Quando em 1948 ficou finalmente resolvida a questão, iniciou-se uma verdadeira corrida contra o tempo, uma vez que o prazo estabelecido para o abandono das Salésias (6 anos) aproximava-se a passos largos… e a tarefa de erguer o novo complexo, como também veremos adiante, parecia ciclópica.

A vitória no Nacional de futebol de 1945/46, por sua vez, elevou ainda mais as exigências. Em virtude do final de carreira de muitos dos jogadores campeões - em muitos casos prematuro e até triste, como no caso de Mariano Amaro - a forçosa e difícil renovação do plantel significou o início de um novo ciclo. É certo que a nova «sementeira» já prometia: logo na época de 1946/47 o Belenenses conquistou o seu primeiro Campeonato Nacional de Juniores. Por outro lado e na mesma altura surgiram as escolas de futebol (ainda pioneiras), sob a orientação do campeão Artur Quaresma.
Mas a equipa de «Honra» ressentiu-se.

Na época seguinte (1946/47) obteve «apenas» o quarto lugar, a 14 pontos do líder. A época de 1947/48 até foi mais satisfatória, com luta pelo título (o Belenenses terminou em terceiro, a apenas 4 pontos do primeiro) e a presença na final da Taça de Portugal. Porém essa mesma final ficaria marcada pelo desolador impedimento de última hora do capitão Amaro (capitão do Belenenses e da Selecção Nacional, note-se), acometido de doença grave. Transtornada, a equipa falhou a oportunidade (com derrota por 3-1 frente ao Sporting). Para cúmulo, o mítico treinador argentino Alejandro Scopelli (para sempre Belenenses do coração) viria a ser despedido em circunstâncias pouco agradáveis.

Nas três épocas seguintes a situação da equipa agravou-se progressivamente e, em simultâneo, acentuavam-se as dificuldades financeiras. Depois de novo terceiro lugar na época de 1948/49 (a 7 pontos do primeiro), seguiu-se um quarto lugar na época 1949/50 (a 18 pontos do primeiro) e um 9º lugar em 1950/51 (a 21 pontos do primeiro), a pior classificação do Belenenses até aquela data.

Os tempos eram outros. O profissionalismo, não muito antes considerado vergonhoso, passou a padrão vulgar. Em consequência - e embora não fosse propriamente novidade (muito menos no Belenenses) - o recrutamento de talentos além-fronteiras (com preferência para goleadores) afigurava-se como uma vantagem competitiva fundamental. O Belenenses tinha de reagir.

O Belenenses reagiu… e bem. Depois de ter conseguido suportar as graves dificuldades financeiras - com rigor e notáveis sacrifícios - recuperou a audácia que tão bem lhe assentava desde nascença. No dia 5 de Maio de 1951 inaugurou uma importantíssima delegação na Avenida da Liberdade (nº 105 – 2º andar), em pleno coração de Lisboa. Embora não fosse a primeira da sua história, viria a ser a mais emblemática e bem sucedida de todas. A sua situação era de tal modo vantajosa que o Clube transferiu para ali os seus serviços de secretaria, instalando também um serviço médico. Tudo isto para estar mais perto de mais adeptos, mas também de boa parte dos seus atletas.

No futebol, a «revolução» teve alcunha… um nome que o futebol português jamais esquecerá: em Setembro de 1951 fez a sua estreia Sebastião Lucas da Fonseca, mais conhecido como «Matateu». O ingresso do «Diamante Negro» foi um decisivo ponto de viragem, mais tarde complementado com a chegada de outros jogadores lendários como o argentino Di Pace (Matateu afirmaria, décadas mais tarde: «Eu fui um marcador de golos, mas o Di Pace é que foi o maior de todos») e o não menos genial Vicente Lucas (irmão mais novo do Matateu).
As Salésias recuperaram a euforia de outrora, inebriadas por um futebol mágico e arrebatador que de novo arrastava multidões.

Entretanto, noutras áreas do Clube, devemos assinalar ainda:
- a inauguração de uma nova e impressionante Sala de Troféus, por ocasião do 34º aniversário;
- a criação de uma pista de ciclismo nas Salésias (sem custos para o clube), devidamente acompanhada por um fulgurante regresso às competições, com destaque óbvio para a Volta a Portugal;
- as brilhantes vitórias no atletismo, com a conquista de vários campeonatos por equipas (femininos), vários títulos individuais e o estabelecimento de inúmeros recordes. À cabeça do sucesso, um nome para nunca esquecer: Georgete Duarte.
E, mais importante ainda, o novo estádio tornava-se realidade. Devido aos compreensíveis atrasos no arranque e execução da obra (como veremos adiante), o Belenenses conseguiu o adiamento do severo prazo imposto pela CML para o abandono do Estádio José Manuel Soares. 1956 seria o ano do adeus.

Como a saudade não consegue muitas vezes virar costas à tristeza, quis o destino que entre as últimas recordações das Salésias se intrometesse um episódio amargo… talvez o mais amargo da história do Belenenses.

Provida de jogadores fenomenais (como os que referimos atrás – Matateu, Di Pace ou Vicente), a equipa de futebol chegou à última jornada do Campeonato Nacional de 1954/55 em primeiro lugar...

...com um ponto de vantagem sobre o segundo classificado, o Benfica. O Belenenses deveria levar de vencida o Sporting, já que a vitória do Benfica no seu jogo (frente ao Atlético) parecia mais que certa. Esta mesma certeza ditava que os sportinguistas já não tivessem qualquer esperança de ser campeões, mesmo que derrotassem o Belenenses (ficariam a um ponto dos «encarnados»).

O desfecho foi terrível. A poucos minutos do fim do jogo, o Belenenses vencia por 2-1 e já se fazia a festa nas Salésias. O resultado já deveria ser mais dilatado, uma vez que o árbitro preferiu ignorar um lance em que o guarda-redes leonino defendeu um remate de Matateu… para além da linha de golo. O juiz de linha correu para o centro do terreno. O próprio guardião do Sporting viria a reconhecer que tinha sido golo. Mas de nada valeram as desesperadas súplicas do «Diamante Negro». Quando já só restavam apenas quatro minutos, o Belenenses sofreu o golo do empate numa jogada absurdamente simples.
Consumada a vitória do Benfica, as Salésias inundaram-se de lágrimas.

Como consolação, a conquista da segunda Bola de Prata por Matateu (que já havia conquistado a primeira de todas, dois anos antes) e a participação na prestigiada Taça Latina, a maior competição a nível europeu de então. O Belenenses não conseguiu levar de vencida em Paris os poderosos Real Madrid (que venceria nas épocas seguintes as primeiras cinco edições da Taça dos Campeões Europeus) e AC Milan… mas também a Europa rendeu-se a Matateu.

O título de 1955/56, última época completa nas Salésias, foi para o Futebol Clube do Porto (cuja última conquista datava de 1940), terminando o Belenenses em 3º lugar.
Ainda ensombrados pela tremenda desilusão de Abril de 1955, assim foram os últimos dias no já saudoso campo.

O último encontro internacional decorreu a 31 de Maio de 1956, frente ao Sevilha, que curiosamente havia sido o adversário no primeiro, 35 anos antes.
O último jogo do Belenenses no Estádio José Manuel Soares realizou-se na primeira jornada do Campeonato Nacional, a 9 de Setembro do 1956. Praticamente cumpridos 29 anos sobre o primeiro jogo oficial ali realizado, após a conquista de centenas de títulos em diversas modalidades, cerca de vinte mil Belenenses acenaram adeus às Salésias presenciando uma vitória por 4-2 frente ao Atlético.

No dia 23 de Setembro seguinte, data da inauguração do novo estádio, o Clube fez a despedida formal. Às 11 horas da manhã foi prestada homenagem a José Manuel Soares, o «Pepe», cujo monumento só mais tarde seria trasladado para o actual local. Seguidamente coube ao Presidente da Direcção arrear a bandeira e dar início ao numeroso cortejo em direcção ao Restelo, afastando-se derradeiramente a multidão do mágico recinto que tantas vezes havia colorido de alegria em azul.

O destino final das Salésias foi bem cruel para a saudade Belenense. Afinal nunca se ergueram prédios de habitação sobre o relvado que certos génios impregnaram de recordações maravilhosas. Não se fizeram jardins sobre o comprimento da pista que desafiou velozes campeões. Volvidas seis décadas sobre a sua sentença, as Salésias não foram afinal «imoladas às exigências do plano de urbanização da Capital do Império». Foram imoladas sim, mas para dar lugar a nada.
O campo ainda lá está… sem relva que se veja. Conserva umas velhas balizas, quais esqueletos fantasmagóricos. Ainda se vislumbra a velha pista de cinza, agora moldura de um baldio. No peão, barracas. No lugar da grande bancada, uma vaga ruela.

Recentemente (entre 2000 e 2004) a Direcção do Clube promoveu romarias ao local do antigo estádio (incluindo a realização de treinos simbólicos) no âmbito das comemorações de aniversário do Belenenses. O propósito foi o de homenagear campeões do passado, mas também sensibilizar os proprietários (Casa Pia de Lisboa) e a Câmara Municipal para que o espaço pudesse ser recuperado para o desporto. Ao que parece… em vão.
Numa das romarias, em 2002, foi descerrada uma placa que lembra o que pode: «C.F. OS BELENENSES / ESTÁDIO DAS SALÉSIAS / 1º CAMPO RELVADO DE PORTUGAL / 29-1-1928 A 09-09-1956».

No Restelo é ainda o monumento ao Pepe que melhor recorda aquele passado glorioso. Assim já o desejava Acácio Rosa em 1952:
«Mantém-se viva a nossa saudade – que será eterna – e a sua figura, o seu nome, a sua imagem hão-de acompanhar-nos das Salésias – Estádio José Manuel Soares – para o Restelo, porque a vida deste garoto, - e que grande jogador! – personifica a chama do idealismo e o fervor da fé belenense.»

30 anos depois da estreia de José Manuel Soares, caberia ao novo herói do «povo» azul (Matateu) abrir com a mesma chave de ouro a nova porta para o futuro do Belenenses… no Estádio do Restelo.

SÉRIE: Cinquentenário do Estádio do Restelo - Capítulo I - 3ª parte

Capítulo I: Antepassados do Estádio do Restelo
3ª parte: glória e ameaça sobre as Salésias


No final da década de 30, o Estádio José Manuel Soares era a «sala de visitas» do futebol português. Era, com toda a naturalidade, a «casa» da Selecção Nacional. E em 25 de Junho de 1939...

...coube-lhe nova e grande honra: jogou-se ali a primeira final da Taça de Portugal (vencida pela Académica de Coimbra).
Cumpre destacar que até à inauguração do Estádio Nacional (em 1944) as Salésias também foram uma verdadeira «casa» da Taça de Portugal, tendo sido o palco de 5 finais (a última delas a 1 de Julho de 1945). A título de curiosidade, foi numa das duas finais que não se realizaram nas Salésias (mas sim no estádio do Lumiar) que o Belenenses venceu a sua primeira Taça de Portugal, como veremos adiante.

Era assim um estádio familiar às multidões. Veja-se outro exemplo, este ocorrido ainda em 12 de Fevereiro de 1939: para corresponder à afluência de um Portugal-Suíça o estádio passou a dispôr de mais 5 000 (!) lugares no peão.

Em 1940 foi inaugurado um evento que alterou radicalmente a zona ribeirinha de Belém: a Exposição do Mundo Português. Parecia passar ao lado do Belenenses, que conservava as Salésias. No entanto não era bem assim. Era um sinal do frenesim que ocupava urbanistas e construtores na renovação de Lisboa. Pouco prometia ser poupado e os estádios de futebol estavam longe de ser excepção.
Desde logo e por causa da Exposição o Casa Pia teve de deixar o seu Campo do Restelo, dando lugar a um efémero parque de diversões anexo ao recinto do evento: não mais voltaria a Belém. Isto embora o Belenenses, solidário e fraternal, tivesse oferecido o seu estádio para que os «gansos» pudessem continuar a jogar - retribuição de tantos outros gestos passados. Aqueles encontraram mais tarde nova «casa», mais longe, do outro lado de Monsanto (o seu actual Estádio Pina Manique). A ameaça ao próprio Belenenses parecia adiada. E em frente seguiu.

Ainda em 1940, a pista de atletismo foi beneficiada e o Belenenses chegou a acordo com a Associação de Atletismo de Lisboa para que todas as suas provas oficiais se passassem a realizar exclusivamente no Estádio José Manuel Soares.

A sede do Clube, entretanto, «deambulou» pela Rua de Belém (nº 48), pela antiga Travessa da Praça (nº 8) já em 1942, até que em 1943 «parou» pelo nº 534 da Rua da Junqueira (na esquina com a Calçada da Ajuda).

Em termos de resultados, sereno mas pujante, o Clube granjeou renovados brilharetes. Em 1942, conquistou a primeira Taça de Portugal em futebol. Foi caso para dizer que à terceira foi de vez, já que nas duas finais anteriores o Belenenses havia sido a equipa vencida. Em 1944 conquistou o seu 5º Campeonato de Lisboa. Em 1945 (15 de Maio) a equipa de futebol brilhou em Madrid perante o Real (empate a duas bolas) e fez história no encontro de retribuição (31 de Maio), batendo os espanhóis nas Salésias com um golo de Rafael.

Mas nem só de futebol se engrandeciam os azuis. Nas restantes modalidades sucediam-se as honras, mas também os sacrifícios. Como por exemplo em 1941, quando Acácio Rosa, num de muitos seus gestos de confesso amor pelo ecletismo, pagou do seu bolso a iluminação do campo de basquetebol, inaugurado um ano antes! Em 1945, outro marco da sua «chancela»: a realização do primeiro jogo internacional de Andebol no país.

No Atletismo, Natação, Ciclismo, «Rugby», Basquetebol, Andebol, Hóquei em Campo, Ténis ou Ténis de Mesa... das fileiras do Belenenses destacavam-se campeões e recordistas nacionais, alguns deles para sempre consagrados como referências do desporto português.

Mas o Clube tinha reservado para si um feito mais estrondoso ainda, na modalidade «rainha». Já senhor de três Campeonatos de Portugal, uma Taça de Portugal e cinco Campeonatos de Lisboa, avançou para a época futebolística de 1945/46 com as maiores expectativas, que não foram goradas: o Belenenses sagrou-se pela primeira vez Campeão Nacional da 1ª Divisão de Futebol, para além de ter conquistado o seu sexto Campeonato de Lisboa. A supremacia!

O país ficou a saber afinal que nas Salésias estavam três «Torres de Belém» a guardar o Tejo: Capela, Feliciano e Vasco de Oliveira (com Serafim das Neves, por vezes, a fechar um «quarteto»). Três baluartes transformados em formidável muralha defensiva. Como médio direito, um «Einstein da bola», assim chamaram o genial Mariano Amaro. A estes juntavam-se os vitoriosos campeões Francisco Gomes, Artur Quaresma, Armando Correia, Rafael Correia, Manuel Andrade, José Pedro Bazaliza, António Elói, Mário Coelho, José Sério, Francisco Martins, Mário Sério e António Martinho.
A comandar esta «constelação», o primeiro treinador português a conseguir conquistar um campeonato nacional: Augusto Silva.

Com todos os jogos em casa disputados nas Salésias, só um deles não resultou em vitória (empate frente ao Atlético). Contra a Oliveirense, houve golos com fartura: 10-0...

Mas, a propósito, lembramos que o «record» do conjunto dos Campeonatos Nacionais e Primeira Liga fora estabelecido na época anterior… numa vitória do Belenenses sobre a Académica de Coimbra por 15-2! Mais uma marca histórica do futebol português «fabricada» nas Salésias, que se mantém insuperada até hoje.

À beira de completar 30 anos de história, o Belenenses colocava-se definitivamente no pedestal dos grandes do desporto português. Com as vitórias no futebol, naturalmente, cresceu a massa adepta. Já em 1933, por altura da conquista do terceiro Campeonato de Portugal (mais do que qualquer outro clube conseguiu até então), havia sucedido algo semelhante.

Entre 1942 e 1944, pese a fraca clasificação do futebol neste último ano (um 6º lugar, até então a pior classificação de sempre, preocupando seriamente os dirigentes), a Direcção do Clube podia orgulhar-se de ter quase triplicado o número de sócios contribuintes, de 1721 para 4185. O objectivo seguinte seria chegar aos 5000 sócios. Com a valia da equipa e os triunfos, pareceu até banal (mas não o foi, claro): em 1945 contavam-se 6793 sócios, em 1946, 8498 sócios (!) e em 1947, 9125 sócios! Em 5 anos o Belenenses conseguiu mais do que quintuplicar o seu número de associados!

Por outro lado, a presença de adeptos Belenenses no resto do país (e até no estrangeiro) não parava de aumentar. Quase 20 anos depois do aparecimento dos primeiros clubes filiados, em 1946 eram já 39 as filiais e delegações!

Com tamanho afluxo de novos «Beléns», os dirigentes sentiam crescer as responsabilidades do Clube. Era preciso manter o nível competitivo do futebol mas também atender à prática desportiva em geral. Assim sendo projectaram-se novas valências para o parque desportivo.

Logo em Maio de 1946 – quase em simultâneo com a conquista do Campeonato Nacional de futebol – o Clube remeteu à Câmara Municipal de Lisboa um pedido de autorização para efectuar melhorias no complexo, onde se incluía a construção de um ginásio coberto destinado aos filhos dos sócios. A resposta da edilidade chegou através de despacho publicado no Diário Municipal, no dia 17 de Junho seguinte.

No referido despacho era concedida a autorização para tudo o que havia sido requerido, com um senão. E que senão! A Câmara Municipal de Lisboa notificou o Belenenses de que só poderia dispôr das instalações desportivas das Salésias por mais seis anos, findos os quais teria de abandoná-las! Assim, sem mais nem menos, qual faca apertada à garganta!

Após 20 anos de labor, enlevo e obra feita sem par, o Belenenses, que por ironia e inocentemente propunha novas melhorias, viu-se na iminência de ser despojado de tudo.
Como veremos no capítulo seguinte, a intenção de «deslocar» os estádios de futebol (não só as Salésias) não era nova. Mas o momento e a forma deixavam transparecer outras intenções, falando-se de invejas alheias causadas pelo notório sucesso e crescimento do Clube em todas as frentes.
Pouco depois veio a saber-se qual era a real intenção da Câmara Municipal: dar passo à urbanização da zona. Mas por ora, no presente capítulo, trataremos de acompanhar o que foi feito do Estádio José Manuel Soares, até ao dia em que teve de ser efectivamente abandonado pelo Belenenses.

Perante aquela aberrante contingência, quase todas as melhorias previstas acabaram por ser descartadas, sendo assim evitada despesa inútil… que poderia fazer falta para a solução do novo campo desportivo. No entanto, por entender ser da maior premência e benefício, o Belenenses persistiu na construção do ginásio coberto, que viria a ser inaugurado em Janeiro do ano seguinte.

Ainda em 1947, enquanto o Belenenses sofria pelo destino da sua «casa», surgiu o convite para ser visita de honra na inauguração da «casa» de outrém. Não era um convite qualquer de um clube qualquer. O poderoso Real Madrid, reconhecendo o Belenenses como clube cimeiro em Portugal – mas também já como velho amigo – queria a sua presença na estreia do seu novo Estádio de Chamartin.

A 14 de Dezembro desse mesmo ano cumpriu-se o inolvidável privilégio, com uma exibição de gala que deixaria Madrid deslumbrada pelos azuis de Lisboa. O resultado final foi uma derrota por 3-1 (depois dos sucessos de 1945), mas o «caseirismo» do árbitro do encontro e a impressionante valia do Belenenses não passaram despercebidos à própria (e exigente) imprensa do país vizinho.

Curioso, irónico. Defrontaram-se as mais fortes equipas dos dois lados da fronteira. Uma inaugurava o maior estádio da Península. A outra, o Belenenses, iria perder o seu… ainda sem certezas quanto ao futuro.

SÉRIE: Cinquentenário do Estádio do Restelo - Capítulo I - 2ª parte

Capítulo I: Antepassados do Estádio do Restelo
2ª parte: as Salésias - Estádio José Manuel Soares

Em 6 Novembro de 1927 o Belenenses cumpriu a primeira parte daquilo a que se tinha proposto como afirmação de grandeza e vitalidade: inaugurou a sua sede na Rua da Junqueira (nº188 – 1º).

Funcional e bem apetrechada, dispunha de secretaria, um gabinete para a Direcção, sala de bilhar, sala de honra, sala de comissões, sala de jogos, sala de ping-pong e «bufete». Na ocasião distinguiram-se pelo seu suado trabalho: Joaquim d´Almeida, Jaime Alves, Henrique Chelmike, Júlio Crespo, Joaquim Rio, Miguel Buttuler, Manuel Barros e Alfredo Barros Ramalho. Note-se que dois deles eram jogadores do primeiro «team» de futebol…

Faltava ainda o campo próprio, mas os trabalhos, também pela mão de consócios, não cessavam…

O grande dia chegou no ano seguinte. Pelas palavras de Acácio Rosa:
«Alma de Almeida na construção do campo: Após esforços e sacrifícios de toda a ordem, tendo como alma criadora de todos os trabalhos o seu jogador Joaquim d´Almeida (a «Alma de Almeida»), o Belenenses inaugura as Salésias a 29 de Janeiro de 1928, num encontro com o Carcavelinhos para o campeonato de Lisboa».

Ribeiro dos Reis, figura proeminente do desporto e da F.P.F. (para além de posterior co-fundador do jornal A Bola) escreveu a propósito: «Não obstante a chuva que caiu durante a noite, o terreno de jogo estava excelente, o que demonstra o cuidado que presidiu à sua construção. O rectângulo do jogo é amplo e desafogado. O plano inclinado para os peões é o mais vasto de todos os nossos campos e, quando devidamente acabado, deve, em dias de grandes enchentes, produzir um magnífico aspecto. O campo ainda não tem bancadas. Provisoriamente foram utilizados para o efeito uns bancos corridos ao longo do «touch».»

Saiba-se ainda que o primeiro jogo foi disputado entre o Bom Sucesso e o Sporting, às 13 horas. O Belenenses estreou o seu campo às 15, vindo a vencer o Carcavelinhos por 4-2.

A reter, um nome indelével: Joaquim de Almeida. Jogador campeão, eclético, com as suas próprias mãos trabalhou na construção do campo (como já o tinha feito para a nova sede), até ao último dia, até ao último momento antes da inauguração. E não se esgotou nesta ocasião o contributo deste grande atleta em prol do Belenenses.
O Clube pulsava com os corações das gentes de Belém. Quando a equipa jogava fora, um dos jogadores mais queridos no bairro (Azevedo) largava um pombo-correio que diligentemente levava as notícias de vitória a casa, onde aguardavam os vizinhos, suspensos de ansiedade. Para levar os equipamentos Clube tinha ao serviço um burrico, que saía das Salésias, de madrugada, com a sua carroça (a Carris não autorizava o transporte). Pitorescos, por certo, estes retratos de uma dedicação extraordinária.

Não tardou o novo campo em ser consagrado com novos títulos: na época de 1928/29 o Belenenses conquistou os Campeonatos de Portugal e de Lisboa.
Com o desafogo, ensaiaram-se novas modalidades: surgiram o «Rugby», o Hóquei em Campo, o Ténis de Mesa e as aulas de Ginástica. Pouco depois o Andebol e mais tarde o Basquetebol. As Salésias acolhiam também, com carinho, o ecletismo.

O labor não cessou. Para erguer as bancadas em falta, a Direcção nomeou uma «Comissão de Melhoramentos», composta por Joaquim d´Almeida (de novo), Vital Jorge de Sousa, Jaime Alves, Fernando Nunes e Luís Teixeira… que não tardou muito em mostrar obra: em 21 de Junho de 1931 foram inauguradas bancadas em cimento armado. Obra pioneira, que os outros grandes clubes haveriam de esperar vários anos para ter igual – as suas bancadas eram ainda feitas de madeira.

Cada vez mais modernas, as Salésias depressa se fizeram mítico campo de glórias, albergue de novos e ímpares talentos do desporto português. Um deles, José Manuel Soares (mais conhecido como o «Pepe» - ídolo nacional, jogador de categoria internacional), viria a falecer em trágicas circunstâncias em Outubro de 1931, lembrando amargamente que a par das brilhantes vitórias caminhava uma teimosa sombra de infortúnio. Em 23 de Setembro de 1932 (aniversário do Clube) foi inaugurado um monumento nas Salésias em sua honra, da autoria de Leopoldo de Almeida e custeado por subscrição pública nacional. Vivia-se o luto, mas não mais se esqueceria o Pepe. Mal se sabia então, mas o monumento do «Pepe» estaria destinado a ser pétrea testemunha de uma era…

As melhorias nas Salésias, contudo, multiplicavam-se - qual recrudescida reacção perante a adversidade. Durante as gerências de 1932 a 1936 completou-se mais uma série de obras no campo (que já então passou a ostentar o nome do malogrado «Pepe»):
- Sobre a bancada central, prolongada em 50 metros, foi aberta uma bancada para os sócios, com lugares sentados e camarotes;
- Foi inaugurada a pista de atletismo em cinza, que pelo juízo da Direcção seria a melhor do país. A condizer, disputa-se o 1º torneio «Madrid-Lisboa»;
- Construiram-se cabines para os árbitros, arrumação dos equipamentos e o posto médico.

Em 1933 e em reconhecimento do seu valoroso serviço em prol do desporto, o Belenenses recebeu do Presidente da República a mais alta condecoração concedida a clubes desportivos...

...sendo agraciado como «Comendador da Ordem Militar de Cristo». Com novo Campeonato de Portugal conquistado, foi ano de especial rejúbilo. Em 1935, outra alta condecoração atribuída: «Oficial da Ordem de Benemerência».

O Campo «José Manuel Soares» era então o estádio com maior lotação de Lisboa. Em 22 de Março de 1936, mais uma obra de relevo: o Belenenses inaugurou as coberturas, tornando-se assim no primeiro clube a dispôr de bancadas cobertas. Enquanto decorriam as obras e estando impossibilitada a utilização do campo, um belo gesto para recordar: o Casa Pia cedeu graciosamente as suas instalações. No criterioso supervisionamento das obras, outro devotado dirigente: Salvador do Carmo. Entretanto e nesse mesmo ano faleceu João Luís de Moura, a quem se deveu a conquista das Salésias.

Ainda em 1936, a 16 de Dezembro, foi assinado um contrato com a Fazenda Pública permitindo a utilização de mais 9.800 m² de terreno com vista à construção de um campo de treinos. O Belenenses crescia.

Em 27 de Janeiro de 1937, porém, novas dificuldades. Um ciclone assolou Lisboa e destruíu por completo as coberturas das bancadas e camarotes. Não se detiveram em desânimo os Belenenses. Logo a 19 de Fevereiro principiaram as obras de reconstrução. Mas trabalhava-se em mais, adivinhava-se mais deslumbre.

Em 24 de Abril de 1937 ressurgiu, renovado e esplêndido, o Estádio José Manuel Soares, já incontestavelmente o melhor do País. Não só estavam reconstruídas as coberturas, como se construíra uma bancada de 3 metros em redor do campo; as instalações sanitárias e as cabinas dos atletas foram dotadas de condições de higiene e conforto nunca dantes vistas; estava pronto o campo secundário de treinos, algo raro ou único… mas mais que tudo isso, uma outra novidade era de pasmar: o Belenenses apresentava o primeiro campo relvado de Portugal!
Não havia igual, e disso deu conta a revista «Stadium», poucos dias depois (28 de Abril):

«A inauguração do estádio José Manuel Soares foi caracterizada pela imponência e brilho que o público emprestou à pugna Belenenses-Benfica, na qual os donos da casa arrancaram a vitória. Tarde de emoção e de consagração, ao esforço dos que pelo desporto muito fazem!!!

É imponente, tudo isto. O rectângulo verde, dum verde macio que faz bem à vista, que permite ver bem o que se passa em redor. Depois, um rectângulo complementar, cor de tijolo, que forma um contraste que realça ainda mais a mancha verde do tapete de relva. Em volta, como sulco aberto na cercadura de tijolo, a fita preta da pista de atletismo. O gradeamento, em branco e azul, dá ao terreno o aspecto curioso dum grande ring com o público debruçado sobre o campo de luta. Num dos lados, os gradeamentos limitam os alçapões de mágica por onde os jogadores aparecem e desaparecem…

A toda a volta, mas especialmente do lado da geral, um mar de cabeças, um mar que ainda não entrou em animar-se… Tranquilo, por enquanto. Um vento de bonança que talvez não chegue a acompanhar a ventaneira desenfreada que sopra nos camarotes… No topo de nascente - uma nota de cor, cor de rosa… São os pequenos do Asilo NunÁlvares, companheiros do Belenenses no aproveitamento da cerca do asilo. Há quem nos diga que o Belenenses vai oferecer bibes azuis à pequenada. Assim, estão melhor. A cor-de-rosa é a cor dos sonhos ainda ingénuos. E dá mais alegria ao campo quando os pequenos se agrupam para ver o jogo.»

Afixaram-se no Estádio placas que assinalavam a efeméride. Uma delas apelava ao orgulho dos sócios: «Belenenses Honrai o Símbolo do Nosso Querido Clube». Uma outra, com justeza, perpetuava gratidão: «Este campo foi mandado arrelvar pela direcção da F.P.F.A. de 1936/37. Dirigiu o arrelvamento o agrónomo J. McInroy (Os Belenenses agradecidos) em 24-4-1937».

O país pareceu render-se à nova maravilha do desporto português. A 9 de Janeiro de 1938 realizou-se o primeiro de muitos jogos da Selecção Nacional ali disputados. A 30 de Outubro do mesmo ano coube ao Belenenses a honra de receber no seu estádio o Festival Desportivo de Comemoração das Bodas de Ouro do Futebol em Portugal: cumpriam-se 50 anos sobre o célebre jogo da Parada de Cascais e a maioria dos intervenientes (alguns deles simpatizantes do Belenenses) esteve presente. Ali e naquele dia, mais que nunca, se honraram os autênticos pioneiros do futebol português.

De permeio, novas melhorias: o campo de treinos foi arranjado de forma a permitir competições oficiais das categorias inferiores de futebol, bem como a prática de outras modalidades desportivas; foi construída à volta do campo uma vala para escoamento das águas da chuva; foi aberto um furo artesiano (de 36,42 metros), para abastecimento de água para as regas e abastecimento dos balneários...

Estava feito um estádio de categoria internacional!